Caqui: revista brasileira de haicai

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Goga Masuda


Goga Masuda, de haijin a haicaísta no espaço de uma vida

Entrevista concedida a Epaminondas Alves, publicada no Jornal do Nikkey (São Paulo) de 06 de junho de 1998


Da natureza brasileira os primeiros imigrantes extraíram a secular poesia japonesa, que mais tarde influenciou os primeiros haicaístas nacionais

Cinco-sete-cinco. Haiku. Kigo. Basho, Issa, Massaoka Shiki. Facetas, nomes da poesia japonesa surgidos a partir da prática do haikai-no-renga, séculos 15-16, em que poetas encadeavam poemetos de três versos, cinco-sete-cinco, finalizando com outro de dois versos, sete-sete sílabas.

1908. Brasil. Nenpuku Sato, Keiseki Kimura. Haiku. Os imigrantes chegam ao Brasil. Trazem suas tradições e em meio ao trabalho pesado, tentam preservar sua cultura. Quando a vida melhora, praticam o haiku. Divulgam entre os brasileiros.

1919. Waldomiro Siqueira. Guilherme de Almeida. Manoel Bandeira. Pedro Xisto. Paulo Leminski. Tantos que souberam apreciar a beleza sintética e instantânea do haiku, rebatizado no Brasil haicai, devido à influência francesa. O pioneiro, Waldomiro Siqueira, conheceu a forma poética através de traduções francesas, com esse nome.

A natureza. O Brasil. O haicai. O kigo. Goga Masuda. Em 15 de dezembro de 1929 desembarcava um jovem issei para trabalhar nas lavouras de café. E praticar o haiku. Começou a escrever em português no ano de 1936. Ajudou a criar grupos de poesia haicai, influenciando e orientando gerações de nikkeis e não-descendentes. E não parou, até hoje.

Epaminondas Alves



Jornal do Nikkey - Já é possível falar numa poesia haicai genuinamente brasileira, diferente da produzida pelos imigrantes japoneses?

Goga Masuda - O haicai é genuinamente poesia japonesa. Canta a natureza do Japão. Chama-se haiku. No Brasil, chama-se haicai, que também canta a natureza, só que a do Brasil.

JN - Mas o haicai brasileiro não é muito peculiar do país Brasil, muito diferente do japonês?

GM - O conteúdo não é diferente, porque todos os dois tipos são poesia com dezessete sílabas, distribuídos em 5-7-5 sílabas. Igualmente canta a sensação do autor que observa a natureza. Quero dizer, a natureza é universal, por isso penso que o haicai é universal.

JN - Quando o brasileiro canta a natureza local e quando o imigrante japonês canta a mesma natureza, tem diferença?

GM - Não, só diferença na língua. Japonês canta na língua japonesa, brasileiro em português. Quero dizer que na própria natureza da poesia não tem diferença. O haicai é uma poesia que canta a natureza. Agora, os imigrantes japoneses vieram aqui no Brasil e cantaram a natureza do Brasil em japonês.

JN - O senhor também é imigrante e escreve haicai em português...

GM- Eu escrevo em português desde [19]36.

JN - E não tem diferença quando o senhor e um brasileiro cantam a natureza?

GM - Quando vou ao Japão canto a natureza de lá. Quando volto canto a natureza daqui.

JN - E quando o senhor canta a natureza do Brasil, não tem diferença na sensibilidade?

GM - Não. A sensibilidade é a mesma.

JN - O que o senhor acha de alguns poetas brasileiros, como Paulo Leminski ou Alice Ruiz, que também fizeram ou que pensaram que fizeram haicai?

GM-Acho que o primeiro que introduziu haicai no Brasil foi Afrânio Peixoto. Importou da França, com denominação haicai. Então, aqui no Brasil, todo mundo usa denominação haicai tradicionalmente. E temos Guilherme de Almeida e outros, que se sensibilizaram muito com a concisão da poesia japonesa, apenasmente [sic] 17 sílabas, menos que a trova, que tem 21. Nesse ponto de vista, não cantava diretamente observando a natureza, essa é a diferença.

JN - Mas é um tipo de haicai.

GM - Existem mais ou menos três tipos de haicai. O haicai com título, com rima e dezessete sílabas rigorosas. Outro tipo, com dezessete sílabas, não obedece rima, sem título, sem kigo, termo utilizado para identificar as estações do ano. Agora, de dez anos para cá, membros do Grêmio Haicai Ipê seguiram a minha idéia de necessidade do kigo no verso do haicai. Qualquer haicai precisa ter. Por quê? Na nossa vida não podemos fugir da transitoriedade da natureza. Quer dizer que, como hoje, desde manhã está chovendo, de tarde, clareia, aí aparecem pássaros, flores, assim, a nossa vida sem a natureza não existe. Por isso, japoneses, Bashô, Matsuo Bashô, renovaram a poesia daquele tempo para a altura da literatura. Nós seguimos o ensino do Matsuo Bashô.

JN -. E essa poesia dos brasileiros, o senhor ainda considera haicai, de Guilherme de Almeida, Paulo Leminski?

GM - Sim, estou considerando tudo em nome do haicai brasileiro. Mas no Japão não passa como haicai, aquele sem kigo.

JN - O brasileiro sentiu atração pela poesia haiku desde muito cedo. Como o senhor explica isso?

GM - Como poeta, acho que o vaso é igual. Poeta japonês, poeta brasileiro, poeta francês, americano. Do ponto de vista da poesia é igual o sentimento. Só o produto é diferente.

JN - Mas como o senhor explica o brasileiro gostar de haicai?

GM- Isso eu não sei. [Ri] Tem que perguntar ao Afrânio Peixoto [um dos pioneiros do haicai no Brasil]. Bom, nesse ponto, concisão, uma poesia muito curta, e por isso o poeta brasileiro sentiu um exotismo, comparando com a poesia ocidental. Acho que é isso.

JN - O senhor tem uma definição pessoal de haicai?

GM - Para mim é muito simples. O haicai é a poesia com 17 sílabas, distribuída em 5-7-5 sílabas, com o kigo. E só.

JN - E a questão da sensibilidade do poeta haicaísta? Como o poeta haicaísta tem que observar a natureza?

GM-Bom, acho que os haicaístas até há bem pouco tempo não acharam importante a presença da natureza na poesia. Somente expressavam o sentimento. Amor, tristeza, essas coisas só. Agora, haicai é diferente por causa da natureza. Quaisquer poemas ocidentais, orientais, tudo está cantando o próprio sentimento do autor, só, objetivamente. Mas o haicai faz observação da natureza através de natureza, objetivamente. Canta a sua sensibilidade através da natureza, essa que é a diferença.

JN - Hoje as pessoas, no Brasil, Japão, vivem cada vez mais nas cidades. Ainda assim é possível às novas gerações cultivarem haicai?

GM - Você pensa assim: quando clareia o céu, você não vê a lua? Quando está na primavera, floresce o ipê. Você já viu o ipê, o jacarandá? Isso é tudo natureza. Dentro da cidade de São Paulo ainda existe natureza, felizmente.

JN - Quando o senhor sente que um haicai é uma boa poesia, que merece ser registrado e ser passado para outras pessoas?

GM- Primeiro, é sensibilidade. Se não sente, não faz poesia. Você olha primeiro a lua, acha bonita ou feia, isso depende do poeta. Mas tudo que tem poesia precisa ter uma sensibilidade, um sentimento. Aí que começa. Quando você olha um ipê você não sente nada?

JN - Eu acho bonito...

GM - Então, aí começa a expressar com suas palavras. Agora, precisa ter técnica. O haicaísta sempre obedece a métrica 5-7-5 sílabas. Agora, sentiu a beleza, mas não sabendo técnica, não tem o haicai.

JN - Entrando agora um pouco no relato pessoal, o senhor poderia falar um pouco sobre o porquê do senhor querer vir para o Brasil, como foi sua chegada, onde trabalhou?

GM - Nesse ponto, eu sempre sonhava. Até agora estou sonhando.

JN -Sonhava com o quê

GM - Sonho. Desde criança eu queria vir para o Brasil. Na escola primária tinha um artigo sobre o Japão, território muito estreito, muita população. Depois, no curso secundário, o professor me ensinou a situação brasileira. O Brasil tem natureza formidável, com espaço grande, com hospitalidade brasileira. É isso que comecei a sonhar. Então cheguei em 1929, no mês de dezembro, dia 15, em Santos, desde quando eu nunca sofri espiritualmente com a vida brasileira. Houve muitas coisas, mas sempre me favoreceram. Então, até agora eu estou sonhando. Com esse sonho faço o haicai. Sem sonho isso não é possível.

JN - Mas que sonho é esse? Sonha em alcançar algo?

GM- Quer dizer que a minha vida toda, é para mim, um sonho. Foi sonhando com o Brasil que cheguei aqui. No começo fui trabalhar na lavoura cafeeira, fizemos contrato com o dono da fazenda através da companhia de imigração. Mas assim mesmo, nunca foi para mim jugo, tristeza.

JN - E quanto tempo o senhor ficou na lavoura cafeeira?

GM - Três anos.

JN - E depois, o que senhor foi fazer?

GM - Fui estudar em São Paulo, em Embu, no Instituto Agrícola de São Paulo. Então voltei à fazenda, onde trabalhei como fiscal. Ajudava o meu gerente, uma pessoa muito boa chamada Oscar Leal, Então com ele passamos uma vida muito feliz na fazenda. Para outros foi um lugar ruim, mas para mim, graças a Deus, nunca foi. Depois eu fiz uma viagem através do estado de São Paulo e vim para Pedregulho. Um amigo meu me ofereceu, com uma bondade extraordinária, uma loja, sem pagar nem um tostão. E trabalhei dez anos em Pedregulho. Bom, essa divida eu já paguei. Durante a guerra, nunca ninguém me perseguiu. Por isso, para mim não tenho com o brasileiro impressão nenhuma de hostilidade.

JN - Mesmo na época da guerra o senhor nunca foi proibido de escrever haicai? E aquele caso de Keiseki Kimura, que quis escrever na lápide um haicai em japonês e o governo brasileiro impediu, e o senhor, José Yamashiro e acho que Jorge Fonseca tiveram que traduzir?

GM-A prefeitura de São Paulo não deixou erguer o epitáfio, na Vila Redentor. E ai Jorge Fonseca me escreveu. Eu precisava traduzir, e consultei Yamashiro, que me apresentou Jorge Fonseca. Nós trocamos algumas idéias e fizemos a tradução. Não me lembro bem a data, mas foi depois da guerra. Nessa época a Shindo-Renmei ainda era ativa e por isso a prefeitura não deixou.

JN - Aproveitando o assunto e falando um pouco sobre a tradução do haicai, é muito difícil traduzir o haicai do japonês para o português?

GM - É impossível. Nós estamos tentando traduzir algumas coisas. Mas qualquer tradução é isso aí: como aquele provérbio italiano, tradutore é traidor.

JN - Como é a sua rotina? O senhor se levanta pela manhã e faz haicai, o senhor escreve haicai todo dia?

GM - Todo dia [saca um caderninho de anotações]. Veja esse, está em japonês. Esse, português [recita].

Neblina se move
Na mata virgem escura
da serra do mar

Quando me levanto, abro a janela e olho o céu. Todo momento eu estou pensando em haicai. Parece louco, não é? Por isso eu estou dizendo que estou sempre sonhando.



Masuda comenta Goga


Jacarandá em flor
Saudade de minha mãe
que gostava de roxo

É um dos meus haicais mais antigos. Esse jacarandá não é enfeite nessa poesia, é a alma. Sem esse termo não forma essa poesia. Mas também, quando olhei o jacarandá me senti relembrando a minha mãe, que gostava de roxo. Por isso mesmo, o kigo é importante.

Ah! mosca de inverno
-- questão de dia ou de hora --
Seu último instante?

A mosca de verão tem atividade e voa muito, ataca comida, essas coisas, mas no inverno fica quieta assim. Tem diferença. Isso é só com observação poética. Mas para qualquer um não tem nada. Só para o haicaísta.


31 de dezembro de 2007

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