Um conto de Akutagawa Ryūnosuke
Tradução, posfácio e notas de Edson Iura
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Chamou a Jōsō e Kyorai, e lhes disse que, insone, fora tomado de súbita inquietação, daí resultando o poema que ditou a Donshū, e pedindo que o lessem:
Doente da viagem
os meus sonhos perambulam
pelo campo seco.
Era a tarde do dia 12 do décimo mês do sétimo ano da era Genroku[2]. Pela manhã, o céu do alvorecer, que por momentos tingiu-se de tons de vermelho, convidava os olhos sonolentos dos comerciantes de Osaka a mirar os telhados ao longe, em busca de chuva como a do dia anterior. Felizmente, essa não veio enevoar as copas dos salgueiros e seus ramos oscilantes, e, por fim, o dia, apesar de nublado, firmou-se claro e tranquilo. Até a água do córrego, correndo como que sem rumo entre as filas de casas, estava opaca e indistinta, sem o seu brilho habitual, e, talvez por conta da imaginação, o verde das aparas de cebolinha que ali flutuavam parecia morno. Quanto ao vai e vem de pessoas ao longo de suas margens, de capuz na cabeça e calçados fechados, essas andavam distraidamente, como se esquecidas do mundo em que soprava o inclemente vento de inverno. A cor das cortinas, o tráfego das carroças, o som distante do shamisen[3] em um espetáculo de marionetes — tudo era levemente luminoso, e até a poeira da cidade, acumulada sobre os pilares decorativos da ponte, guardava em sua imobilidade a calma de um tranquilo dia de inverno.
Nessa altura, no salão ao fundo da loja de flores de Nizaemon, situada em Midō-mae, no bairro de Minami Kyūtarō, o grande mestre de haikai da época, Matsuo Tōsei da Cabana da Bananeira[4], permanecia sob os cuidados de inúmeros discípulos, vindos de todas as direções, e, ao cabo de 50 anos de idade, estava prestes a dar seu último suspiro em paz, “como o calor de brasas enterradas que lentamente se extingue”. Eram cerca de quatro horas da tarde. Junto à cabeceira, a fumaça do incenso subia em um único fio no meio do espaçoso salão, formado ao remover as divisórias internas. A porta corrediça, com suas cores novas, represava o inverno no jardim, mas, mesmo assim, o interior permanecia sombrio e gelado de arrepiar. Bashō se encontrava silenciosamente deitado com o travesseiro voltado para o lado da porta, e, à sua volta, em primeiro lugar, estava seu médico Mokusetsu[5], que, colocando a mão debaixo das cobertas, verificava o pulso fraco do paciente, com o cenho franzido em sinal de preocupação. O homem sentado logo atrás, desde algum tempo entoando sem parar uma ladainha budista, era sem dúvida o velho criado Jirobei, que acompanhou o mestre desde Iga. Enquanto isso, todos reconheciam ao lado de Mokusetsu o grande e corpulento Shinshi Kikaku[6], com o peitoral de seu casaco imponentemente estufado, junto a Kyorai. Este vestia um quimono de fina estampa, com os ombros eretos e uma postura solene, observando atentamente a condição do mestre. Atrás de Kikaku, com a aparência de um monge calmo e reservado, ficava Jōsō, que tinha um rosário de madeira sagrada[7] no pulso, e Osshū[8], sentado ao seu lado, fungava sem parar o nariz, provavelmente porque já não conseguia suportar a tristeza que lhe invadia o coração. Esquadrinhando o cenário, enquanto coçava a manga de seu hábito antigo e entortava o queixo de maneira antipática, estava a figura de um monge de porte atarracado, Inenbō[9], ombro a ombro com Shikō, de pele morena e aparência de gênio forte, ambos sentados no lado oposto ao de Mokusetsu. No mais, um certo número de discípulos estava disposto ao redor do leito do mestre, tão quietos que não se percebia sua respiração, alguns à direita, outros à esquerda, todos lamentando um luto sem fim. Entretanto, apenas um dentre eles, talvez Seishū[10], recolhido a um canto do salão e prostrado dentro dos limites de um tatame[11], deixava escapar um gemido de lamentação. Até mesmo esse som, contudo, era abafado pelo silêncio gelado que dominava o ambiente, e nenhuma voz se erguia para perturbar o sutil aroma do incenso que subia da cabeceira.
Bashō, depois de ter feito seu vago testamento, com a voz enevoada pelo chiado do muco, parecia ter entrado em coma, com os olhos entreabertos. Sua face, ligeiramente marcada por antigas pústulas de varíola, estava tão emaciada que lhe saltavam as maçãs do rosto, e os seus lábios enrugados tinham finalmente perdido qualquer vestígio de sangue. Particularmente dolorosa de ver era a cor de seus olhos, cujo brilho estava praticamente apagado, voltados para cima, como se mirassem em vão para além do teto, na direção do céu infinito, frio e distante:
Doente de viagem
os meus sonhos perambulam
pelo campo seco. [12]
Foi dessa maneira, com esse mesmo olhar desconexo que ele, três ou quatro dias atrás, parecia estar, tal como descreveu em seu poema final, perambulando, como em um sonho, pelas cores sombrias de um vasto campo seco, sem sequer um traço de luar.
— A água.
Assim falou Mokusetsu, voltando-se calmamente para Jirobei, que estava em sua retaguarda. O velho criado já tinha preparado uma tigela de água e um pincel com ponta de plumas brancas. Timidamente, arranjou os dois objetos à cabeceira do seu amo, e, como se recobrasse a lembrança, voltou a recitar a sua ladainha, em ritmo veloz e com grande devoção. Para o coração simples e camponês de Jirobei, fosse Bashō ou qualquer outra pessoa, o caminho para alcançar a outra margem exigia igualmente a submissão à misericórdia do Buda Amida, uma crença sólida e profundamente enraizada em sua fé.
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Por outro lado, Mokusetsu, enquanto pronunciava a palavra “água”, ainda se questionava, como médico, se havia de fato esgotado todos os meios ao seu alcance, uma dúvida que frequentemente o assombrava. Contudo, logo recuperou a confiança, e, voltando-se para seu vizinho Kikaku, fez apenas um sinal discreto, sem dizer uma palavra. Foi nessa altura que um sentimento crescente de tensão irrompeu nas mentes das pessoas em volta do leito de Bashō. Não havia como negar que, ao lado desse sentimento de tensão, havia também um sentimento de alívio, por finalmente ter chegado o momento esperado. Porém, esse sentimento de alívio era tão sutil que ninguém se dispunha a confirmar sua existência. Mesmo Kikaku, o mais prático entre os presentes, não pôde evitar surpresa, ao embaraçosamente cruzar os olhos com Mokusetsu, que acabara de conhecer, e perceber o mesmo sentimento refletido no olhar do outro. Desviando apressadamente a vista para o lado, tomou então o pincel com calma e prestou satisfações a seu vizinho Kyorai:
— Com licença, vou começar.
Na sequência, molhou o pincel na tigela de água, enquanto sustentava o peso de seu corpo sobre os grossos joelhos, e olhou gentilmente para o rosto do mestre. Na verdade, até esse ponto, ele tinha uma ideia vaga de que a despedida do mestre seria muito triste. Contudo, ao ter em mãos a água do momento final, ele percebeu que seus sentimentos reais contrariavam completamente as manifestações dramáticas que previa, e seu espírito se mantinha sereno. Não só isso, mas ainda mais surpreendentemente, a visão sinistra do mestre moribundo, emaciado literalmente até o ponto de pele e ossos, despertou nele um sentimento de repugnância, tão intenso que quase teve de virar o rosto. Não, intenso ainda não era uma descrição adequada. Era o tipo de repugnância mais insuportável, como um veneno invisível que provocava até efeitos fisiológicos. Nesse momento, teria ele, por acaso, transferido a sua antipatia por tudo o que é feio ao corpo doente do mestre? Ou talvez, para ele, um hedonista amante da “vida”, quem sabe a realidade da “morte”, ali simbolizada, fosse a mais terrível das ameaças de uma natureza amaldiçoada? — De qualquer forma, Kikaku sentiu um desconforto inexplicável ante a visão do rosto do moribundo Bashō e, tão logo aplicou uma pincelada de água em seus lábios finos e arroxeados, afastou-se com uma carranca. Enquanto se recolhia, um tipo de remorso passou brevemente por sua cabeça, mas a repugnância que sentira antes era tão intensa que sobrepujava qualquer senso de moralidade.
Depois de Kikaku, o próximo a erguer o pincel foi Kyorai, que aparentava estar intranquilo desde o sinal de Mokusetsu. Conhecido por sua modéstia, curvou-se levemente ante os presentes, e aproximou-se da cabeceira de Bashō. Em frente ao velho mestre de haikai, enquanto contemplava seu semblante consumido pela enfermidade, era obrigado a provar, a contragosto, uma estranha mistura de satisfação e remorso. Carregadas de um vínculo inextricável, satisfação e remorso, como sombra e luz, vinham perturbando sem descanso a sua natureza tímida nos últimos quatro ou cinco dias. Assim que soube da gravidade da doença, embarcou em Fushimi e bateu à porta da loja de flores no meio da noite. Desde então, não falhou um dia sequer nos cuidados ao mestre. Chamou Shidō e pediu-lhe que o ajudasse nas tarefas diárias, enviou uma pessoa ao santuário de Sumiyoshi para rezar por uma pronta recuperação, e acorreu ao auxílio do florista Nizaemon para comprar utensílios e materiais. Era praticamente o único responsável por todas as providências. É claro que Kyorai fazia tudo isso de espontânea vontade, e era fato que não tinha o menor desejo de cobrar gratidão de ninguém, mas a consciência de que se dedicava de corpo e alma aos cuidados do mestre tinha lançado as sementes de uma grande satisfação no fundo de seu ser. Contudo, era uma satisfação inconsciente, que atuava como um pano de fundo para suas atividades, na forma de um sentimento confortador, e não lhe trazia qualquer tipo de questionamento em sua vida diária. Caso contrário, enquanto estava sob a luz da lanterna de vigília, entregue a conversas banais com Shikō, não teria deliberadamente trazido à tona o princípio do dever filial, nem feito uma longa preleção incluindo uma frase como “servir ao mestre é, para mim, servir aos meus próprios pais”. Porém, naquele instante, ao notar o breve sorriso no rosto malicioso de Shikō, ele subitamente se deu conta de que sua até então tranquila harmonia interior havia sido perturbada. Ele descobriu que a causa dessa perturbação estava tanto na satisfação que acabara de perceber em si quanto na autocrítica a essa satisfação. Enquanto cuidava do mestre gravemente doente, estaria se preocupando genuinamente com o seu destino incerto, ou, ao invés disso, degustava futilmente seu próprio esforço com satisfação? — Sem dúvida, essa descoberta gerou um sentimento de culpa em uma pessoa tão honesta quanto ele. Desde então, Kyorai começou a sentir um certo desconforto em suas ações, devido ao conflito entre satisfação e remorso. Precisamente quando um sorriso, mesmo que fortuito, apareceu no semblante de Shikō, o sentimento de sua própria satisfação aflorou, e, como resultado, cada vez mais frequentemente, uma consciência envergonhada de indignidade vinha invadir seus pensamentos. Os dias se sucederam, e eis que ele se encontrava ao lado do mestre, oferecendo-lhe a água do momento final. É lamentável, mas não surpreendente, que uma pessoa moralmente impecável, mas com nervos inesperadamente frágeis, tenha perdido completamente sua compostura perante uma contradição interior. Por isso, quando Kyorai empunhou o pincel, seu corpo se tensionou de maneira estranha, e até mesmo a ponta branca e aguada do pincel tremia intensamente, enquanto tocava os lábios de Bashō, como se tomada por uma agitação anormal. Mas, felizmente, junto com as lágrimas prestes a transbordar de seus olhos, os discípulos que o observavam, incluindo o sarcástico Shikō, interpretaram essa agitação como resultado da sua tristeza.
Feito isso, Kyorai recompôs-se, endireitando os ombros do quimono de fina estampa, e retornou lentamente ao seu lugar, passando o pincel para as mãos de Jōsō, que estava atrás dele. Habitualmente discreto e respeitável, Jōsō abaixou seus olhos com humildade, murmurando uma oração indistinta, enquanto umedecia suavemente os lábios do mestre, desenhando uma cena solene aos olhos dos presentes. Eis que, repentinamente, naquele instante tão grave, ouviu-se uma risada sinistra, vinda de um canto do salão. Ou, pelo menos, assim pareceu. O som era como uma gargalhada emergindo do fundo do peito, mas represada pela garganta e pelos lábios, e que, ainda assim, impossível de ser contida, explodia em fragmentos pelas narinas. Não é preciso dizer que ninguém, naquela situação, havia perdido o decoro e realmente rido. O que se ouviu era, de fato, o lamento sentido de Seishū, há algum tempo tentando reprimir o choro, que, em um certo momento, irrompeu com violência e transbordou de seu peito, como a expressão de uma tristeza profunda. Talvez, entre os discípulos presentes, não fossem poucos os que se lembraram da famosa estrofe do mestre:
Move-te, oh sepultura!
A minha voz lacrimosa
é o vento de outono. [13]
Diante de um lamento tão intenso, Osshū, que também estava prestes a se afogar em lágrimas, não pôde deixar de sentir um certo mal-estar por conta do exagero daquele pranto. — Ou, para usar de mais franqueza, diante do que via como falta de compostura. Só que, provavelmente, a natureza desse desconforto era puramente intelectual. Apesar de sua cabeça dizer não, seu coração foi imediatamente abalado pelo lamento de Seishū, e, em algum momento, seus olhos também estavam cheios de lágrimas. Não mudou nem um pouco, em relação ao que foi dito antes, o fato dele se sentir desconfortável com o comportamento de Seishū, além de considerar que seria inaceitável se ele mesmo chorasse. Não obstante, suas lágrimas começaram a transbordar incontrolavelmente dos olhos. — Osshū, finalmente, colocou as mãos nos joelhos e, sem querer, deixou escapar um soluço. Aparentemente, não foi o único a soluçar nessa altura. Entre os discípulos que estavam reunidos ao pé do leito de Bashō, começou a se ouvir, quase ao mesmo tempo, o som suave de pessoas fungando o nariz, ecoando de maneira intermitente, o que fez vibrar o ar frio e tranquilo.
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Em meio a essas vozes tão tristes, Jōsō, com seu rosário de madeira sagrada enlaçado ao pulso, voltou a sentar-se tão tranquilamente quanto antes. Depois dele, era a vez de Shikō, que estava no lado oposto ao de Kikaku e Kyorai, se aproximar da cabeceira. Famoso por seu cinismo, parece que Tōkabō, como também era conhecido, não era sensível o suficiente para ser influenciado pelas emoções de seus vizinhos, abstendo-se de derramar lágrimas desnecessárias. Com seu rosto moreno, como de costume, exibindo um ar zombeteiro, como de costume, e com aquela mesma postura peculiar de arrogância, como de costume, pincelou negligentemente a água nos lábios do mestre. Entretanto, mesmo ele não podia negar a forte emoção do momento:
Em meu coração
um esqueleto abandonado.
Arrepio ao vento.[14]
Há quatro ou cinco dias, o mestre, lhe dizia repetidas vezes, expressando gratidão: “Eu pensava que morreria sobre a relva, tendo a terra por travesseiro, mas é uma felicidade poder deixar este mundo sobre uma cama tão bonita”. Contudo, não há grande diferença entre a imensidão de um campo seco e o salão nos fundos de uma loja de flores. Agora molhando a sua boca, a verdade é que ele, até três ou quatro dias, se preocupava com o fato de o mestre ainda não ter escrito um poema de despedida. Ontem, ele já fazia planos para reunir os poemas do mestre em uma coleção póstuma. Finalmente, hoje, até há pouco, observava o mestre, que, a cada momento, se aproximava mais de sua morte, com um olhar quase curioso, como se o estivesse estudando. Indo além, e pensando de maneira cínica, é possível que, por trás daquele olhar, ele já estivesse fazendo anotações para um futuro diário sobre os seus últimos momentos. Assim, mesmo assistindo ao mestre em seus momentos finais, o que dominava a sua mente eram coisas como a reputação que ganharia frente a outras escolas, os resultados para os seus alunos ou até mesmo os seus próprios interesses e cálculos pessoais — todos assuntos que nada tinham a ver com o mestre à beira da morte. Portanto, no final das contas, podia-se dizer sem receios que o mestre, como frequentemente imaginava, de forma vívida, em seus poemas, tornou-se um esqueleto abandonado no vasto campo seco da vida. Os discípulos, na verdade, não lamentavam o líder que morreu de forma desamparada no campo seco, mas lamentavam a si mesmos, por perderem o líder ao entardecer. Mesmo que se tentasse uma crítica moral, não havia o que fazer, pois a falta de compaixão é própria da natureza humana. — Enquanto se aprofundava nessas reflexões pessimísticas, habilidade da qual se orgulhava, Shikō terminou de molhar os lábios do mestre, devolveu o pincel à tigela original, e, com um olhar zombeteiro, observou os discípulos que estavam soluçando em lágrimas. Então, lentamente, voltou ao seu lugar. Alguém bondoso como Kyorai foi, desde o começo, afetado pela atitude fria de Shikō, o que reforçou a insegurança que sentira antes. No entanto, apenas Kikaku, com uma expressão estranha e um tanto desconfortável, parecia se irritar com essa insistência de Tōkabō em ser desdenhoso e cínico até o fim.
Logo após Shikō, no breve intervalo em que Inenbō suavemente arrastava a barra de seu hábito negro pelo piso de tatame, parece que o momento do último suspiro de Bashō se acercou mais, como num estalo de dedos. A cor do rosto havia se tornado ainda mais lívida do que antes, e, por entre os lábios úmidos, a respiração, às vezes, parecia cessar, como se por esquecimento. Então, de repente, num sobressalto, como se recordasse o seu papel, a garganta se contraía de forma perceptível, reiniciando a frágil passagem de ar. E, do fundo da garganta, por duas ou três vezes, ouvia-se um suave gorgolejo de muco. A respiração parecia estar gradualmente se extinguindo. No instante em que estava prestes a tocar esses lábios com a ponta branca do pincel, Inenbō foi subitamente tomado por um certo temor, que nada tinha a ver com a tristeza do luto. Era um temor quase irracional, de pensar que o próximo a morrer, depois do mestre, seria ele mesmo. Ele sempre foi o tipo de pessoa com um medo patológico da morte, e, desde muito tempo, sempre que pensava em sua própria, até mesmo em meio a passeios agradáveis, experimentava um temor incomum, que fazia seu corpo suar em abundância. Portanto, quando ouvia falar da morte de outras pessoas, ele se sentia aliviado, como se pensasse consigo mesmo: “Ainda não foi desta vez”. Ao mesmo tempo, havia momentos em que ele também sentia uma inquietação oposta, perguntando-se como seria quando chegasse a sua hora. Como era de se esperar, não houve exceção no caso de Bashō. — Enquanto sua morte ainda não era tão iminente, a luz dos dias ensolarados de inverno se infiltrava pela porta de papel e os narcisos enviados por Sonojo exalavam seu perfume suave, todos se reuniam à cabeceira do mestre, criando poemas para consolar sua doença. Nesse período, ele oscilava entre dois estados de espírito, luz e escuridão, de acordo com o momento. Mas, à medida que a morte se aproximava, — ele jamais esqueceria o dia da primeira chuva de inverno, quando o mestre não conseguiu comer a pera de que tanto gostava e a preocupação surgiu no semblante de Mokusetsu inclinando a cabeça, — a confiança foi gradualmente substituída por uma crescente inquietação. Por fim, até mesmo essa inquietação se transformou em um amargo temor, como se a próxima morte pudesse ser a de Inenbō, encobrindo seus sentimentos com um manto frio e opressivo. Talvez tenha sido no instante em que ele o mirava, justamente nesse instante, que, ao ouvir um leve som de catarro congestionado, ressoando na garganta de Bashō, a coragem reunida para aquele momento se esvaiu no meio do caminho. “Quem sabe seja eu o próximo a morrer depois do mestre.” — Inenbō, que constantemente ouvia do fundo de sua mente essa espécie de voz premonitória, encolheu seu pequeno corpo e, após retornar ao seu lugar, assumiu uma expressão ainda mais carrancuda do que de costume, mantendo os olhos erguidos de forma a não precisar olhar para mais ninguém.
Um a um, os discípulos Osshū, Seishū, Shidō e Mokusetsu sucederam-se para molhar os lábios do mestre. Ao longo desse tempo, a respiração de Bashō se enfraquecia a cada fôlego, e seu ritmo se tornava mais espaçado. Também não se percebia mais movimento na garganta. Um rosto pequeno, com aparência de cera e discretas marcas de pústulas emergindo sobre a pele, os olhos desbotados, fixos em um ponto distante, e uma barba branca como prata, estendendo-se do queixo — tudo isso congelado pela fria natureza humana, como que em torpor profundo, talvez sonhando com o paraíso ao qual está destinado. Então, neste momento, o silencioso Jōsō, fiel e experiente praticante de zen, que estava com a cabeça baixa, atrás de Kyorai, começou a sentir, lentamente, à medida que a respiração de Bashō se enfraquecia, uma tristeza sem fim, e, ao mesmo tempo, uma sensação de paz sem fim, fluindo para dentro de si. A tristeza, por si só, não precisa ser explicada. Mas a sensação de paz era como se a fria luz do amanhecer se espalhasse gradualmente pela escuridão, uma sensação de misteriosa serenidade. E essa sensação, momento a momento, afogava e eliminava todos os pensamentos diversos e, por fim, até mesmo as lágrimas em si não continham qualquer dor que ferisse o coração, transformando-se em tristeza pura. Estaria ele celebrando o fato de que a alma do mestre transcendeu a ilusão da vida e da morte e retornou à terra pura do eterno nirvana? Não, nem ele mesmo conseguia encontrar uma razão para afirmar isso. Nesse caso, — ah, quem ousaria, em vão, ser tolo assim para enganar a si mesmo? Essa sensação de paz de Jōsō era, na verdade, a alegria da libertação, como se seu espírito, agora independente, que por tanto tempo se submetera, sem resistência, à sombra da personalidade de Bashō, finalmente começasse a esticar mãos e pés com a sua própria força. Imerso nesse êxtase de triste alegria, enquanto deslizava os dedos pelas contas do rosário de madeira sagrada, não percebia mais os demais discípulos ao redor, que pareciam ter sumido, perdidos em suas lágrimas. Ele então esboçou um leve sorriso nos cantos da boca e fez uma profunda reverência na direção de Bashō, em seu último momento.
Foi assim que Matsuo Tōsei da Cabana da Bananeira, o maior mestre de haikai de todos os tempos, cercado por discípulos mergulhados em uma “tristeza sem fim”, partiu definitivamente.
Setembro de 1918
Posfácio
Edson Iura
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Akutagawa Ryūnosuke (1892-1927) é considerado o pai do conto japonês. O maior prêmio literário do Japão recebe o nome de Prêmio Akutagawa em sua homenagem. Escreveu cerca de 150 contos. Um dos mais famosos é Rashōmon, adaptado ao cinema por Kurosawa. Chegou a compor haicais, sob a alcunha haicaísta de Gaki. Escreveu “Notas do Campo Seco” (Kareno Shō) em 1918, como uma ficcionalização da morte de Bashō.
Para escrever este conto, Akutagawa baseou-se na leitura do “Diário da Mochila” (Oi Nikki), de Kagami Shikō, e do “Diário da Loja de Flores” (Hanaya Nikki). Este último é uma obra apócrifa, originalmente publicada em 1811, que supostamente reúne depoimentos e cartas de Bashō e discípulos. Não obstante, suas qualidades literárias foram elogiadas, por exemplo, por Shiki, que teria sido levado às lágrimas por sua leitura. Um trecho desse diário compõe a epígrafe do conto de Akutagawa, descrevendo as condições em que um Bashō desenganado compôs seu último haicai, ponto inicial da narrativa.
Em “Notas do Campo Seco”, são descritos os últimos momentos de vida de Bashō, ao fim de uma viagem que fez de Edo (Tóquio) à sua terra natal Iga, Quioto e Osaka. Nesta cidade, adoeceu, talvez devido a uma intoxicação alimentar, e viu seu estado piorar dia a dia, forçando seus discípulos a alugarem o salão do florista Nizaemon, onde o instalaram no dia 5 do décimo mês lunar de 1694. No dia 8, cada vez pior, escreveu seu poema de morte. Faleceu no dia 12, ou seja, 28 de novembro de 1694. Seu corpo foi sepultado no templo Gichū-ji, em Ōtsu, atual província de Shiga, a leste de Quioto.
O conto de Akutagawa trata dos momentos finais de Bashō, cercado por seus discípulos, que procedem ao ritual budista de pincelar seus lábios com água, um tipo de extrema-unção. Bashō permanece estático e silencioso durante toda a narrativa, como uma entidade quase divina. Encarna um ideal espiritual e artístico ansiosamente buscado, merecendo a reverência de todos os presentes. Mas em vez de glorificar essa figura, Akutagawa enfatiza o contraste entre o mestre em vias de alcançar o paraíso e os discípulos, imperfeitos em sua humanidade.
A narrativa descreve o perfil psicológico de sete dos discípulos presentes: o hedonista Takarai Kikaku, o altruísta Mukai Kyorai, o devoto Naitō Jōsō, o inconsolável Kawai Otokuni ou Osshū, o aparentemente severo Mizuta Masahide ou Seishū, o cínico Kagami Shikō e, por fim, Hirose Izen, aqui chamado de Inenbō, um monge que teme a morte. Tais personagens são pintados com tintas pessimistas e nada elogiosas por um narrador irônico.
Há quem diga que, na verdade, Akutagawa, ao escrever sobre Bashō, estava com o pensamento voltado para a morte recente de seu mentor, Natsume Sōseki (1867-1916), por quem tinha grande admiração. Os personagens seriam então os diversos aspectos de uma dor complexa e multifacetada. Esse conjunto de reações se torna uma exploração da ambiguidade moral e dos conflitos do ser humano.
Podemos pensar nas diversas formas de expressão da individualidade que surgem da narrativa. Os discípulos lamentam a morte do mestre, é claro, mas também se preocupam com as consequências pessoais da perda. Eles são afetados por seus medos, seus interesses e pelos efeitos esperados com a partida de Bashō de suas vidas. Esse quase egoísmo não é condenado pelo narrador, que prefere atribuí-lo à própria natureza humana.
A morte tão próxima, literalmente ao alcance da mão, amplifica as contradições dos indivíduos, obrigando-os a confrontarem suas falhas e suas motivações reprimidas. A morte de Bashō, na verdade, lança luz sobre a vida e suas complexidades.
Notas
[1] Diário da Loja de Flores (Hanaya Nikki). Obra apócrifa do século XIX que pretendia ser uma coleção de notas e cartas dos discípulos de Bashō. Apesar de ser uma recriação ficcional, a obra foi amplamente apreciada pelo seu tom poético.
[2] Pelo calendário gregoriano, 28 de novembro de 1694.
[3] Shamisen: Banjo japonês de três cordas.
[4] Bashō-an Matsuo Tōsei, no original. Bashō-an quer dizer Cabana da Bananeira. Tōsei era o nome usado anteriormente por Bashō (1644-1694) antes de ganhar a famosa bananeira que plantou em frente à sua cabana.
[5] Mochizuki Mokusetsu ou Bokusetsu. Datas de nascimento e morte desconhecidas.
[6] Takarai Kikaku (1661-1707) também chegou a usar o nome Shinshi.
[7] A madeira sagrada refere-se à figueira sob a qual Sidarta Gautama alcançou a iluminação. No Japão, a figueira não se desenvolve devido ao clima temperado e, por isso, usa-se madeira de tília.
[8] Kawai Otokuni. Osshū é uma outra leitura de seu nome. Datas de nascimento e morte desconhecidas.
[9] Hirose Izen ou Inen (1648-1711). O sufixo bō em Inenbō quer dizer monge.
[10] Mizuta Masahide (1657-1723). Seishū é outra leitura de seu nome.
[11] Uma placa de tatame tem as medidas aproximadas de 2m x 1m.
[12] O último poema de Bashō: tabi ni yande yume wa kareno o kakemeguru, escrito quatro dias antes de sua morte.
[13] Parte do diário “Trilhas Longínquas de Oku” (Oku no Hosomichi). Quando Bashō chegou a Kanazawa, tencionava encontrar-se com o poeta Isshō, que conhecia apenas por carta, mas soube que morrera um ano antes. Restou-lhe visitar sua sepultura. Original: tsuka mo ugoke waga naku koe wa aki no kaze.
[14] Parte do diário “Notas de um Esqueleto Abandonado” (Nozarashi Kikō). Em sua primeira viagem poética, Bashō temia sucumbir aos perigos de estradas precárias e infestadas de bandidos, vendo seu corpo esquecido se transformar em um esqueleto lavado pelo tempo. Mas a viagem foi coroada de sucesso e seguida por outras. Original: nozarashi o kokoro ni kaze no shimu mi kana.
Bibliografia
AKUTAGAWA, Ryûnosuke. Kareno shō. Aozora Bunko, 26 fev. 2004. Disponível em: <https://www.aozora.gr.jp/cards/000879/files/72_14932.html>. Acesso em: 11 jan. 2025.
______. O’er a withered moor. In: ___. Mandarins. Tradução de Charles De Wolf. Brooklyn: Archipelago, 2007. ISBN 978-0-9778576-0-9 (edição eletrônica).
______. Terra morta. In: ___. Rashōmon e outros contos. Organização e tradução de Madalena Cordaro; Junko Ota. São Paulo: Lunna, 2021. p. 69-82. ISBN 978-65-86238-33-4.