Edson Iura
Pesquisadores às vezes se voltam para a comunidade nipo-brasileira em busca de falares arcaicos, que não acompanharam a evolução do idioma no Japão. Porém, não é no seio dos haijin imigrantes, e sim entre poetas brasileiros falantes de português, que se registra o uso arraigado de haicai, um termo obsoleto há mais de um século. Haiku é o termo atualizado que designa a poesia curta inspirada pelos cânones definidos por mestres como Bashô, Issa e Shiki, no Japão e em quase todo o mundo. Mas a regra é quebrada justamente no Brasil, onde, paradoxalmente, tal forma poética é muito popular. Tentarei rastrear os principais pontos do percurso da palavra haicai ao longo da história, procurando entender a tenacidade de seu uso no Brasil.
Meus avós paternos eram haijin ou haicaístas, seguidores do mestre Satô Nempuku. O haiku nunca foi assunto de conversa em família, a não ser quando, ocasionalmente, comentava-se à mesa que eles compareceram a um haikukai. Foi somente após conhecer a palavra haicai de alguma leitura que perguntei a meus pais se aquela palavra haikukai não seria na verdade haicai. Responderam que não sabiam o que era haicai, e que o que meus avós praticavam era haiku. Este era, a meu ver, um tipo de passatempo que envolvia reuniões de pares e, ocasionalmente, excursões a locais pitorescos em busca de inspiração. Resumidamente, uma atividade social. Na idade adulta, ao aprender um pouco de japonês, vim a compreender que haikukai era a fusão das palavras haiku (o gênero poético) e kai (associação), denotando uma associação de praticantes para composição e apreciação coletiva de haiku. Percebi também que o haiku dos meus avós e o haicai escrito em língua portuguesa eram formas poéticas com uma origem comum. Assim, desde jovem, essa dualidade me intrigou.
Da China ao Japão
Haikai (com “K”, romanizada segundo o Sistema Hepburn) é uma palavra de origem chinesa que significa cômico. Qual seria a etimologia da palavra haikai? Posso informar por ora que a definição “haikai é igual a cômico” (em japonês: kokkei) chegou aos literatos japoneses através dos clássicos chineses, em especial o Livro de Han, uma história da China durante a dinastia Han.
A palavra haikai entrou na literatura japonesa a partir da antologia imperial Kokinshû do século X, composta de mais de 1100 poemas waka (poemas de 5-7-5-7-7 sílabas, totalizando 31 sílabas, modernamente conhecidos por tanka). Entre os poemas da antologia, uma seção de 58 deles recebeu o título de haikai uta, ou seja, poemas haikai, ou poemas cômicos. Podiam ser poemas cômicos no sentido de fazerem rir, mas no geral, o que se destacava era a discordância desses poemas com a dicção poética elegante, ou seja, eles eram engraçados por causa da temática extravagante, da deficiência técnica ou do linguajar impróprio. Por sinal, em português, é comum exclamarmos “Engraçado!” mesmo sem vontade de rir, quando encontramos algo estranho ou incoerente.
Ao se dividirem as 31 sílabas do waka em duas partes de 5-7-5 e 7-7 sílabas, atribuindo cada parte a um autor diferente, originou-se um novo gênero poético, o renga, ou seja, poemas ou estrofes encadeadas. Essa modalidade de poesia colaborativa evoluiu progressivamente das duas estrofes iniciais até chegar a cem estrofes sequenciais, alternando-se entre os formatos de 5-7-5 sílabas e 7-7 sílabas, compostas durante um encontro de poetas. Algum tempo depois, surge o haikai renga. A palavra haikai foi usada para deixar claro que se tratava apenas de um divertimento. Mas isso foi apenas até que o próprio haikai renga evoluísse de brincadeira frívola para se transformar em arte elevada, pelas mãos de seu maior representante, Matsuo Bashô, no século XVII. Nessa altura, o haikai renga já era conhecido apenas por haikai, a mesma palavra que, no tempo do Kokinshû, significava poesia cômica. Porém, pelas mãos de Bashô, o haikai viu seu significado evoluir para algo completamente diferente, que consistia em emprestar significado sublime às mudanças sutis da natureza e nobreza à paisagem humana mais vulgar.
Um poema com três nomes
Numa sequência de haikai, a primeira estrofe é a mais importante, por ditar o rumo das estrofes seguintes. Essa primeira estrofe é chamada de hokku, ou seja, estrofe de partida ou estrofe inicial. Ela tem a medida de 5-7-5 sílabas, totalizando 17 sílabas. A importância dessa estrofe era tão grande que os poetas começaram a compô-la com antecedência, antes das reuniões de haikai, e daí, a qualquer momento em que surgisse a inspiração. Caso esses hokku avulsos não fossem aproveitados em haikai, havia a possibilidade de publicá-los em antologias de poemas independentes.
Com o crescimento da importância do hokku, em algum ponto da história as noções de hokku e haikai passaram a se confundir. Haikai significava originalmente uma sequência de haikai renga, enquanto hokku era a sua primeira estrofe. O fato é que “fazer haikai” poderia ser tomado tanto por participar de uma reunião de versos encadeados como por escrever um hokku independente.
Nesse momento, chegamos ao fim do século XIX, quando o poeta Masaoka Shiki estava gravemente preocupado com o futuro da poesia tradicional japonesa, que via em risco de desaparecer em contato com a cultura ocidental. Usando paradigmas da própria cultura ocidental, em especial o de que uma obra de arte deveria ser a criação de um indivíduo, o que ele fez foi condenar o haikai renga, que não considerava arte verdadeira, por ser uma criação coletiva, e valorizar o hokku, este sim uma criação individual. E fez por bem diferenciar esse novo hokku com um nome distinto: haiku, a união das palavras haikai e hokku.
Do Japão ao Brasil
É muito difundida no Ocidente a narrativa de que Shiki inventou a palavra haiku. Isso não está errado, pois podemos considerar que Shiki inventou o significado moderno de haiku como um novo gênero literário, e não mais como um mero pedaço do haikai renga. Entretanto, não é segredo que a palavra haiku já existia ao tempo de Bashô, com o sentido de hokku de um haikai renga, como registra o popular dicionário japonês Kôjien.
Chegamos assim ao fim do século XIX com uma forma poética e três nomes diferentes: haikai, hokku e haiku. Essa confusão não passou despercebida dos primeiros japonólogos: o inglês Basil Chamberlain afirmou que hokku, haikai e haiku podiam ser usados indiferentemente. Analogamente, o francês Michel Revon observou que os próprios japoneses não se preocupavam em distinguir seus significados. Isso é um ponto-chave para entender como o haikai chegou ao ocidente. No Japão, com o passar do tempo, foi se estabelecendo a primazia da palavra haiku, como legado da vitoriosa revolução poética liderada por Shiki. Hoje, com esse nome, a poesia da tradição de Bashô é imensamente popular no Japão. Enquanto isso, na França, a situação evoluiu de maneira distinta. Como havia três palavras com o mesmo significado, ficava subentendido que qualquer uma era boa. O escritor Paul-Louis Couchoud foi quem primeiro manifestou a preferência por haikai, e não hokku ou haiku, provavelmente pela cacofonia da sílaba ku. Sua influência acabou atingindo o brasileiro Afrânio Peixoto.
Vamos recapitular rapidamente como o haikai entrou na literatura brasileira. Em 1919, Afrânio Peixoto fez menção ao haikai, dando exemplos japoneses e citando o francês Couchoud. Em 1928, fez ainda mais, dedicando um ensaio inteiro a essa forma poética e nele incluindo um apêndice de 52 haikais escritos por ele mesmo. A essa altura o haikai já era bem disseminado na França e deve ter inspirado muitos poetas modernistas no Brasil. Guilherme de Almeida, por exemplo, instruiu-se sobre o haikai durante a década de 1930, lendo traduções francesas e até mesmo frequentando um grêmio de haiku nipo-brasileiro de São Paulo. Através do trabalho desses e de outros pioneiros, o interesse pelo haikai se consolidou no Brasil, atravessando, aparentemente incólume, até mesmo a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, como parte do clima beligerante, as reuniões haikukai entre imigrantes japoneses praticantes do haiku eram rigorosamente reprimidas, bem como qualquer manifestação pública em língua nipônica.
“Japonicamente ortodoxo”
Outra era a realidade no mundo da língua portuguesa. Para mostrar como andava a receptividade ao haikai nessa época tão crítica, citamos uma crônica do jornal carioca A Manhã, de 29/05/1943, em pleno calor da guerra no Pacífico, escrita por ninguém menos que Manuel Bandeira. Nessa crônica, o poeta comentou seu interesse pelo haikai (que chamava de hai-kai, separando as sílabas com hífen), citou nomes de praticantes brasileiros e traduziu quatro poemas de Bashô. Assim escreveu o poeta: “É verdade que até hoje só perpetrei um hai-kai; mas hei de perpetrar outros. Não os farei rimados, como os de Guilherme de Almeida. Quero ficar japonicamente ortodoxo”.
Foi assim, sem obstáculos, que o haikai abriu caminho para chegar até nossos dias, cada vez mais popular, seja como alternativa de forma poética fixa, seja como veículo para tiradas humorísticas, como fez Millôr Fernandes, ou mesmo como objeto de reflexão sobre a própria poesia, como fizeram os concretistas. Esse é o segundo ponto-chave para se entender a permanência da palavra haikai. Tornou-se tão popular que mereceu vernaculização, isto é, ser oficialmente incluída na língua portuguesa. Isso ocorreu em 1952, no famoso episódio em que o haicaísta Luiz Antônio Pimentel influenciou Aurélio Buarque de Holanda na dicionarização da palavra haicai com “C”. Essa vernaculização obedeceu às regras da lexicografia portuguesa, que prefere o “C” ao “K”.
O fato da palavra haikai ter uma longa história de continuidade e popularidade entre nós levou a uma consequência imprevista: a palavra haiku não vicejou no Brasil, permanecendo segregada a haicaístas de língua japonesa, como os meus avós. Quando as palavras haiku, hokku e haikai chegaram à França, no início do século XX, foram filtradas pelo viés da eufonia, e por isso prevaleceu haikai como a dicção mais aceitável. Isso se transmitiu ao Brasil, que adotou haikai em detrimento de haiku. Porém, na França, o haikai tão popular durante as décadas de 1920 e 30 desapareceu durante a Guerra. Quando o interesse por essa poesia ressurgiu na década de 70, a memória do antigo haikai tinha se apagado e assim os poetas franceses puderam estudar o haiku japonês a partir do zero. Com seus ouvidos melhor preparados para aceitarem a palavra haiku, é assim que se chama hoje em dia a poesia de Bashô na França.
Preferência nacional
Quanto ao Brasil, o interesse pelo haiku japonês sempre se renovou através de múltiplas vias. Podemos citar o intercâmbio com a forte tradição do haiku dos imigrantes, retomado ao fim da Guerra, o já lembrado interesse da poesia concretista, a imensa influência de Millôr Fernandes e Paulo Leminski e, recentemente, o intercâmbio internacional pela internet. Mas a nomenclatura haiku sempre se chocava com o prestigiado haicai já conhecido e praticado de longa data. Sempre que o haiku se apresenta no Brasil, ele é obrigado a se identificar como sinônimo de haicai e ceder primazia à versão brasileira. O próprio Grêmio Haicai Ipê, um coletivo poético que atua fortemente na divulgação do haicai dentro de cânones próximos aos japoneses, nunca adotou a palavra haiku. O Brasil é um dos poucos países do mundo que não usa essa palavra. Sabemos que até mesmo os poetas de Portugal preferem usar a forma haiku.
Não bastasse a prevalência de haikai sobre haiku no Brasil, há ainda a questão da preferência, por alguns, da palavra vernaculizada haicai com “C”, e por outros, da palavra original haikai com “K”. Haicai com “C” tem presença antiga nos dicionários, constando há tempos como vernáculo no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, o VOLP. Entretanto, verificamos que a edição de 2021 do VOLP manteve haicai com “C” e adicionou haikai com “K”, essa última devidamente assinalada como estrangeirismo, ao lado de palavras como tanka, sushi, rock e smartphone. Só se pode concluir uma coisa: a Academia de Letras rendeu-se à realidade de que muita gente prefere escrever haikai com “K”, malgrado a existência da versão vernaculizada. Estrangeirismo por estrangeirismo, note-se a ironia da ausência, no VOLP, da palavra haiku, a que verdadeiramente representa o poema no Japão moderno.
No Brasil, a defesa da grafia haikai com “K” pode se tornar muito emocional, como mostra uma manifestação que colhi no Facebook, que afirma categoricamente que haicai com “C” é “uma violação, uma falta de respeito com a origem da poesia mínima imortalizada por Bashô!” Cada um é livre para usar a versão que quiser. Mas é possível reconhecer os pontos de vista daqueles que se posicionam a favor de uma ou outra grafia. Em resumo, o que enxergo é que, entre aqueles que defendem o “K”, existe a vontade de homenagear a poesia dos mestres do passado e de se reconhecerem como herdeiros de uma grande, antiga e venerável tradição literária originária do País do Sol Nascente, representada pelo exotismo da letra “K”. Já entre os que são partidários do “C”, o foco é a naturalização em termos de língua, formato e temática, trabalhando pela integração do haicai à literatura brasileira, em analogia ao processo de integração dos imigrantes japoneses e seus descendentes como cidadãos brasileiros. Isso inclui nomear o haicai pela forma aportuguesada do dicionário, da mesma forma que os nipo-brasileiros assimilaram a língua e os costumes brasileiros.
Haicai do Brasil
Enfim, chegamos até aqui sabendo como a palavra haikai/haicai, uma denominação obsoleta no Japão, aportou no Brasil e prevaleceu até hoje sobre as outras, na contramão do mundo. Isso foi possível, em primeiro lugar, devido à informação recebida pelo Ocidente, de que havia três palavras equivalentes para denominar o mesmo tipo de poesia, sucedendo-se a escolha da mais eufônica. Em segundo lugar, constatamos a grande popularidade que essa poesia, doravante denominada de haicai, atingiu entre nós, unindo em torno dela uma significativa comunidade de estudiosos, tradutores e criadores, cujo interesse progrediu continuamente desde o início do século XX, sem nunca retroceder. A consequência é a impossibilidade do termo haiku, majoritariamente empregado no mundo, de vencer a barreira erguida pelo haicai, entusiasticamente acolhido pela literatura brasileira.
O professor e tradutor Andrei Cunha reconheceu recentemente que o haicai é uma preferência nacional. A presença do haicai é tão forte entre nós que obscureceu outras formas da poesia japonesa como o tanka e os versos livres. Por isso, muitos têm a impressão errônea de que o haicai é a única forma de expressão poética do Japão. Isso é análogo à crença de que os japoneses comem apenas sushi e sashimi, uma inferência indesejável, mas que decorre unicamente da avassaladora popularidade desses alimentos no Ocidente.
Como uma grande e
diversa família, a prole de Bashô é extensa e ultrapassa fronteiras e séculos.
Os haicais escritos por poetas brasileiros podem por vezes se afastar dos
cânones da origem, mas nunca deixarão de reclamar para si a herança dessa
tradição.
Este texto é um resumo do ensaio “De haikai a haicai: Uma jornada etimológica”, publicado no livro Cesto de caquis: Notas sobre haicai (Jundiaí: Telucazu, 2021). Foi inicialmente lido em 18/08/2022, durante a I Semana de Cultura Japonesa da USP. Posteriormente, foi escolhido para integrar a antologia de escritores nikkei latinoamericanos Más Allá del Haiku (organizada por Hagimoto e López-Calvo, edição da Asociación Peruano Japonesa, 2024).