Edson Iura
O haicai é uma forma poética muito popular no Brasil. Sua origem é japonesa. A prática do haicai remonta ao século 15, quando nasceu como um divertimento. Entretanto, pode-se dizer que foi Matsuo Bashô (1644-1694) o responsável por aperfeiçoar e dar qualidade literária ao gênero. Há várias maneiras de se compor haicai em português, mas neste artigo só trataremos de uma.
A forma
Não é nosso propósito desfiar longas teorias. Por enquanto, gostaríamos de discorrer sobre o haicai a partir de um exemplo concreto de composição:
Nesta noite escura,
nenhum caminho aparece.
Brilha o vaga-lume.[1]
Este poema de Dôshin Esteves serve para demonstrar o formato mais representativo do haicai, uma estrutura de três versos, ou linhas, em que:
Nes/ta/noi/te_es/cu/ra, | Cinco sílabas |
Ne/nhum/ca/mi/nho_a/pa/re/ce. | Sete sílabas |
Bri/lha_o/ va/ga-/lu/me. | Cinco sílabas. |
Isso totaliza dezessete sílabas. A contagem de sílabas é poética, isto é, conta-se até a última sílaba tônica ou forte, marcada com negrito (respeita-se o ritmo da dicção, que funde vogais átonas, e não a separação gramatical). Não há rima nem título.
Como dissemos, há várias formas de haicai. A descrita não é a única existente, mas será a única tratada neste artigo.
O corte
Vamos falar agora de uma característica muito importante: o corte. Observe que o haicai acima pode ser dividido em duas frases:
“Nesta noite escura, nenhum caminho aparece.”
e
“Brilha o vaga-lume.”
A consequência imediata desse corte é introduzir uma quebra na leitura. Dessa quebra, resulta um espaço vazio entre as duas partes do haicai. A primeira parte prepara a ambientação e chama o foco para a segunda parte que virá a seguir. A tensão entre as pontas desse intervalo produz reverberação, que contribui para incrementar a emotividade e o teor poético dos versos.
O haicai é um texto muito curto. Por isso, tem no corte um importante recurso expressivo. Se vertêssemos o haicai original em uma frase simples, teríamos algo como:
“Nesta noite escura, um vaga-lume brilhante guia o meu caminho.”
Esta frase, dividida em três linhas, torna-se:
Nesta noite escura,
um vaga-lume brilhante
guia o meu caminho.
Metricamente, é perfeito (5-7-5 sílabas). Entretanto, desaparece a tensão entre dois polos de interesse e, com ela, muito da poesia.
Por outro lado, apenas um corte é suficiente, ou seja, o haicai deve ser composto de exatamente duas frases, e não três. Vamos dividir o haicai original em três frases independentes:
Noite muito escura.
Desaparece o caminho.
Brilha o vaga-lume.
As três frases competem pela atenção da leitura, sem nenhum foco.
A estação e o kigô
Falamos da forma e do corte interno. Agora é a vez da estação. O haicai sempre contém uma palavra ou locução que remete à estação do ano. No caso acima, é a palavra vaga-lume, que remete ao verão, época em que esse inseto é mais abundante. Essa palavra ou locução é conhecida pelo nome japonês kigô. Os kigôs mais elementares são os próprios nomes das estações: primavera, verão, outono e inverno.
Existem kigôs que se referem a corpos celestes, fenômenos da natureza, animais ou plantas, característicos das estações, como por exemplo ipê (primavera), mosquito (verão), paineira (outono) e geada (inverno). Por último, há os kigôs que remetem a ações humanas, típicas de cada época, como o Dia do Professor (primavera), o Carnaval (verão), a Páscoa (outono) e a festa junina (inverno). Deve haver apenas um kigô por haicai.
Assuntos
Quais são os assuntos do haicai? O haicai não versa sobre sentimentos ou ideias. É mais como uma fotografia, buscando retratar uma sensação vivida, como a visão do vaga-lume em meio à escuridão representada acima. Por ser um retrato incompleto, devido à limitação de espaço, dizemos também ser um esboço ou uma pincelada:
Nesta noite escura,
nenhum caminho aparece.
Brilha o vaga-lume.
Não é papel do poeta descrever o alívio que sentiu ao ver a tênue luminescência do vaga-lume em meio às trevas, ou lamentar-se pelo desaparecimento dos vaga-lumes causado pelo avanço das cidades. Seu haicai apenas sugere algo, que deve ser redescoberto pelo leitor. Ao redescobrir a sensação experimentada pelo poeta, o leitor revive sentimentos e pode conceber suas próprias ideias sobre o vaga-lume.
Quanto menos escreve o poeta, maior é o prazer da descoberta. Por isso, um bom haicai descreve apenas um detalhe do cenário completo, deixando o restante aberto à imaginação de quem lê. O poeta não tenta relatar o sentimento que teve ou dirigir a interpretação dos fatos. Através do seu esboço, tenta meramente repassar ao leitor a causa de seu sentimento, ou seja, a sensação, visual, auditiva, olfativa, de tato ou de paladar, que originou o dito sentimento.
O haicai é um poema objetivo. Adicionalmente, através da técnica do corte, podemos dividi-lo em duas partes. A primeira parte pode ser uma descrição introdutória e a segunda pode ser um zoom, atraindo a atenção para o foco do haicai. No poema acima, os primeiros dois versos introduzem uma cena de escuridão, seguida pela aparição em zoom do vaga-lume no terceiro verso.
Resumo
Quando escrever seu próximo haicai, procure enquadrá-lo nas diretrizes acima. Escreva um poema em três versos sem rima nem título, contando cinco, sete e cinco sílabas poéticas, sempre incluindo um kigô. Organize-o em duas frases, correspondendo uma a um verso e a outra dividida entre os dois versos restantes (ou vice-versa). A primeira frase pode ser uma introdução enquanto a segunda funciona como zoom. A linguagem é sempre objetiva, sem sentimentalismo nem conceitualismo.
PS: Desde seus primórdios, o haicai se caracterizou como uma atividade social. Procure uma comunidade para aprender, praticar e ver seus poemas validados. Recomendamos o Zen do Haicai, no Facebook.
[1] HANDA, Jishô (org.). Olhos de neblina. S/l: Edição de autor, 2016, p. 19.