Edson Iura
Palavras que borbulham como refrigerante retrata o romance de dois adolescentes que floresce à sombra das redes sociais, em meio a poemas haicai e à nostalgia dos discos de vinil, tudo tingido por uma paleta de cores quentes de verão. O filme de animação japonês (animê), lançado em 2021 e dirigido por Ishiguro Kyôhei, faz parte do catálogo da Netflix.
Um romance para todas as gerações
O verão chegou na fictícia cidade de Oda e as férias escolares asseguram tempo livre aos jovens. Reproduzindo uma realidade tão comum aos nossos dias, o ambiente seguro e agradavelmente climatizado de um moderno shopping center é onde todos vão procurar lazer nos dias de calor.
Com toda a comodidade, no shopping se concentra uma gama de serviços indispensáveis à vida moderna. Há até mesmo um centro de cuidados em esquema day care, para onde os familiares levam e trazem diariamente seus idosos, liberando-se para o trabalho. É um serviço cada vez mais frequente de se ver. Muitas pessoas aqui no Brasil acabam usando a denominação creche para idosos, na analogia com as creches infantis.
Lá trabalha Cherry (Cerejinha, na versão brasileira), um rapaz introvertido de 17 anos, fazendo um bico de meio período como cuidador. O idoso ao qual se sente mais ligado é Fujiyama, sempre visto carregando uma surrada capa de disco vazia. Ambos compartilham o interesse pelo haicai, forma poética tradicional de dezessete sílabas fundamentada no diálogo com a natureza.
Apesar do ponto em comum, seus diálogos nem sempre são frutíferos, pois Fujiyama é surdo e se comunica aos gritos. Isso é algo que Cherry não suporta. Os fones de ouvido que usa em todo lugar não tocam nenhuma música, servindo apenas para abafar o ruído exterior e inibir a aproximação de estranhos. É terrivelmente envergonhado para falar em público. Além de dois ou três amigos, sua única janela para o mundo é a rede social onde publica seus poemas. Apesar de tanta inibição, ele anseia por reconhecimento, mas admite, embaraçado, que a única pessoa a dar “like” assiduamente em seus haicais é a própria mãe.
Em outra ala do shopping existe um consultório odontológico onde encontramos Smile (Sorrisinho, na versão brasileira. Ela está fazendo a manutenção periódica do aparelho que usa para corrigir seus incisivos projetados para a frente, como os da Mônica. Ao contrário de Cherry, Smile é luminosa e desinibida, especialmente em suas lives (transmissões ao vivo) na mesma rede social de Cherry, acompanhadas por milhares de seguidores. É o que se chama atualmente de influenciadora digital. Entretanto, Smile tem vergonha de seus dentes e de seu aparelho, permanentemente escondidos por uma máscara cirúrgica.
Mesmo no Japão pré-pandêmico, esconder o rosto atrás de uma máscara já era uma atitude relativamente comum. Alega-se resfriado ou alergia, quando na verdade não houve tempo de fazer a maquiagem ou simplesmente se deseja privacidade. Para Smile, a máscara representa um momento de baixa autoestima. A adolescência é uma fase de mudanças bruscas, tanto físicas quanto mentais. É normal que isso traga uma sensação de inadequação do próprio corpo. É o caso de Smile, que até há pouco tempo achava kawaii (fofos) os seus dentes saltados e agora os esconde envergonhada.
Esses dois adolescentes tão diferentes terão a chance de se conhecerem. Como dois nativos digitais, usarão as ferramentas que têm, literalmente, ao alcance das mãos. Através de seus celulares, começam por curtir as postagens um do outro. Não demora para que apertem juntos o botão “seguir”, uma ação cheia de simbolismo que delimita a fronteira entre a amizade e algo mais.
Mas antes que o romance prospere, cada um precisará enfrentar seus fantasmas: Cherry tem dificuldade em dar voz aos seus sentimentos, acreditando mesmo que isso não é necessário, como numa ocasião em que tentou justificar que seus haicais se bastavam como arte escrita, dispensando a declamação em público. Por outro lado, a expansiva Smile precisa aceitar a sua aparência e perceber que pode ser amada do jeito que é, sem a necessidade de se esconder.
Enquanto isso, Cherry e Smile conectam-se com o velho Fujiyama. Eles descobrem que a capa vazia obsessivamente carregada pelo idoso continha um disco gravado por sua esposa, falecida há meio século. Por anos, a única coisa que Fujiyama fez na vida foi tentar resgatar esse disco para ouvi-lo pelo menos mais uma vez antes de morrer.
Um dos momentos mais tocantes do filme é ouvir Fujiyama relatar aos jovens que, apesar de ter sido o disco que mais ouviu na vida, até mesmo essa memória querida desapareceu com o tempo. É quase em tom de súplica que o idoso murmura: “não quero esquecer, mas não me lembro”. A velhice cobra seu preço em saúde e vitalidade, mas o que pode ser mais cruel do que levar a memória, justamente aquilo que define e dá sentido à vida?
O filme é, assim, um tratado sobre conexões. Enquanto sozinhos, os protagonistas são inseguros e se fecham nas redes sociais. No momento em que se conectam, um elogia no outro justamente aquilo que se acreditava ser uma fraqueza e assim ganham confiança para crescer.
Outra conexão ocorre com os idosos do centro de cuidados, especialmente com Fujiyama. Por causa dela, os jovens conhecem novas realidades, saem em busca da tradição e da história de sua comunidade e mergulham no mundo nostálgico dos discos de vinil. Terão assim a oportunidade de resgatar uma história de amor de meio século atrás e nela se refletirem.
Por fim, uma conexão importante que perpassa o filme é a do dinamismo das lives e tuítes das redes sociais se combinando harmoniosamente com a contemplativa tradição do haicai e o lento passo da dança de Daruma, ensaiada com afinco pelos idosos para sua apresentação no festival vindouro. Estamos falando de um filme dirigido à Geração Z, mas que ressalta a importância do cuidado com os mais velhos e com tudo o que se pode aprender com eles.
Este é o primeiro longa-metragem dirigido por Ishiguro Kyôhei, antes conhecido por séries como Your Lie in April e Children of the Whales. O visual exuberante é traduzido por poucas sombras e silhuetas bem delineadas, preenchidas por uma paleta de cores quentes e chapadas. A luminosidade e a alegria da estação estão bem representadas.
Na verdade, há muita nostalgia envolvida. Muito do estilo do filme veio do gosto de Ishiguro, 41 anos, pelas efervescentes capas desenhadas por Suzuki Eijin e Watase Seizô nos anos 1980 para álbuns do gênero city pop (que passou por um revival recente).
Quanto à música, a principal canção do filme foi encomendada a Ônuki Taeko, compositora e cantora que iniciou a carreira nos anos 1970 e se ligou ao mesmo movimento musical. Essa atmosfera retrô temperada pela onipresença das redes sociais combina bem com a proposta de unir dois mundos separados pelo tempo.
A animação é fluida e expressiva, tanto nas cenas de ação quanto na linguagem corporal dos personagens, transmitindo veracidade e empatia dentro das convenções visuais consagradas do gênero. A riqueza de informações visuais é impressionante, a começar pelo shopping center, modelado em 3d a partir de um estabelecimento real, o Aeon Mall de Takasaki, na província de Gunma.
O detalhismo continua no centro de cuidados, onde cadeiras de rodas convivem com os computadores usados nas tarefas administrativas. Suas paredes são preenchidas por pôsteres coloridos, quadros de avisos e, ressaltando a importância do haicai para o centro e para o filme, diversos tanzaku (tiras de papel com poemas escritos), quadros com a caligrafia dos kigôs de verão e um enorme kakemono com um poema de Fujiyama. Na casa de Smile, o quarto onde ela convive com suas duas irmãs tem arquitetura de loft e decoração de sonho. Mesmo o modesto dormitório de Cherry é rico em detalhes, como o calendário com haicais de Bashô e Kyoshi e exemplares da revista Haiku, da editora Kadokawa.
O rap do haicai
Uma das ideias mais interessantes deste filme foi o uso de haicais comentando ou dialogando com as cenas. Além disso, há o destaque dado à própria prática poética. É raro ver termos técnicos como kigô (palavra de estação) e saijiki (dicionário de kigôs) serem pronunciados em filmes, o que pode ser conferido nas legendas em português (a versão dublada prefere outros caminhos).
Presenciamos o personagem principal andando com um saijiki preso à capa do celular. O próprio título do filme em japonês é um haicai. Em entrevistas, o diretor Ishiguro Kyôhei afirma ter adotado o gênero após a leitura de um livro de diálogos entre o haicaísta Kaneko Tôta (1919-2018) e o multiartista Itô Seikô (Taryûjiai Haiku Nyûmon Shinken Shôbu, Ed. Kôdansha). Lá ele anotou a instigante passagem “o haicai é o começo do hip-hop no Japão”.
Foi nesse momento que ocorreu o insight de Ishiguro: “Itô Seikô está entre os fundadores do rap [manifestação poético-musical da cultura hip-hop] japonês e tem uma percepção muito aguçada sobre o haicai. Sabendo que o haicai se conecta com o contexto do hip-hop, pensei: por que não incorporar o haicai como gênero musical?” Isso resultou na introdução de haicais fazendo parte ativa do enredo, além de serem usados como vinhetas e pano de fundo.
Inicialmente, o diretor percebeu que seria difícil para a sua equipe escrever com qualidade todos os haicais necessários. Mais importante que isso, era necessário que eles tivessem o sabor da poesia produzida por um estudante do ensino médio. Isso foi resolvido recorrendo a estudantes reais, todos creditados ao fim do filme (Coube à poeta Kurose Karan, por sua vez, se encarregar dos haicais do idoso Fujiyama).
A produção recebeu mais de cem haicais que exerceram muita influência no trabalho final. Como exemplo, o diretor cita a cena em que Cherry compõe o haicai “Falsa largada/ na hora do entardecer—/ Luzes de verão”, que Smile classifica como “fofo”. Essa reação ocorreu de verdade, durante um dos kukai (reunião para leitura de haicais), e foi incorporada ao roteiro.
Dessa maneira, os haicais pontuam organicamente o filme inteiro. Eles podem estar presentes diretamente no enredo, com sua leitura disparando comportamentos dos personagens, ou então como intertítulos, em que sua aparição incidental numa pichação comenta ações do enredo. Mesmo tendo estrutura tradicional, sua linguagem é compatível com o que se espera de um poeta adolescente, envolvido num mundo urbano e tecnológico.
A disseminação dos poemas pelas redes sociais e através da arte de rua é outro aspecto que chama a contemporaneidade. A pequena extensão do haicai é perfeita tanto para um tuíte quanto para uma pichação. É óbvio que essa organicidade só pôde ser obtida encomendando-se haicais adequados ao roteiro pretendido, já que Cherry é um personagem fictício. Por outro lado, ao mostrar na prática como trabalha um haicaísta, o filme ganha autenticidade.
É interessante aprofundar a leitura de Ishiguro. Vimos que Itô Seikô disse ao haicaísta Kaneko Tôta: “O haicai é o começo do hip-hop no Japão”. Ele acrescentou de forma entusiasmada: “O haicai tem rima e tem samples. É completamente hip-hop!”
Um aspecto do haicai japonês é sua dependência intertextual, seja através da citação de textos da tradição literária japonesa e chinesa, seja através dos kigôs, palavras de convenção compartilhadas por gerações de haicaístas de todos os tempos para cantar fenômenos ligados às quatro estações. Ao usar um kigô, mesmo um poeta jovem como Cherry consegue dialogar de igual com todos os poetas do presente e do passado. Essa intertextualidade pode ser interpretada como uma amostragem, ou seja, guarda certa correlação com os samples ou empréstimos de trechos musicais.
Ao usar um kigô, mesmo um poeta jovem como Cherry consegue dialogar de igual com todos os poetas do presente e do passado.
Quanto à rima como a conhecemos, ou seja, a coincidência intencional de sons entre versos, essa não se desenvolveu na linguagem poética tradicional japonesa. O que Kaneko Tôta explicou é que o haicai é um poema com ritmo 5-7-5, onde se escolhem as palavras adequadas a esse ritmo. Cada palavra escolhida deixa sua própria impressão e essas impressões reverberam entre si, em ritmo. Essa reverberação particular pode ser poeticamente chamada de rima.
Se o haicai tem a ver com o rap, talvez haja espaço para discussão. O fato é que, em um momento importante do filme, acabamos presenciando algo que podemos identificar como um brilhante cruzamento do rap com o haicai.
No próximo artigo, você poderá acompanhar as traduções e comentários a alguns dos haicais de Palavras que borbulham como refrigerante.
Ficha técnica
Título: Palavras que borbulham como refrigerante/ Saidaa no yô ni kotoba ga wakiagaru
País: Japão
Lançamento: 2021 (A pré-estreia ocorreu no Festival Internacional de Cinema de Xangai de 2020, mas seu lançamento comercial foi adiado para 22/07/2021 devido à pandemia)
Duração: 87 minutos
Diretor: Ishiguro Kyôhei.
Roteiro original: Satô Dai e Ishiguro Kyôhei.
Design de personagens e direção de animação: Aikei Yukiko
Distribuição: Netflix
Elenco (japonês/português brasileiro)
Cherry: Ichikawa Somegorô/ Rafael Schubert
Smile: Sugisaki Hana/ Jeane Marie
Fujiyama: Yamadera Kôichi/ Ricardo Rossato
Legendas em português brasileiro: Bruno Spinosa Tiussi