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Comentários à Kigologia

Mensagem postada na lista de discussão haikai-l em 19/10/96, por ocasião do lançamento do livro Natureza - Berço do Haicai (Kigologia e Antologia).

O livro é composto de três partes principais. A primeira é dedicada ao estudo e catalogação dos kigos. A segunda é uma antologia de poemas produzidos aqui no Brasil. A terceira, um suplemento em que se coletam textos vários sobre o haikai encadeado e sobre os princípios do haikai praticado no Grêmio de Haicai Ipê.

Para quem é novo na lista, e não sabe o que é o kigo: Kigo é o nome que se dá à palavra ou expressão que, num poema de haikai, indica indubitavelmente uma estação ou época do ano. A propósito da importância do kigo, escreveu o falecido mestre Teiiti Suzuki, na abertura do livro que estamos comentando, um texto que acho interessante transcrever na integra:

O preceito budista de que tudo neste mundo é transitório aparece na literatura japonesa desde seus primórdios, mais exatamente, na primeira antologia poética compilada no século VIII.

Nos versos encadeados (renga e haikai renga), essa transitoriedade é expressa pelos kigo (termos de estação) que remetem às estações do ano ou a fenômenos sazonais e que devem constar obrigatoriamente da estrofe inicial do encadeamento, denominada hokku. Este hokku, por sua vez, passa a constituir um gênero independente a partir dos fins do século XVII, justamente quando o haikai renga da escola de Bashô se consolida com sua poética genuína.

No decorrer do século XIX, o termo hokku é substituído por haiku, neologismo criado por Masaoka Shiki - poeta e crítico renovador do gênero - por aglutinação de haikai renga com hokku.

Esse gênero poético, também conhecido pelo original haiku nos Estados Unidos, Canadá e América Central, é introduzido no Brasil por Afranio Peixoto, em 1919, com a denominação francesa haikai, aportuguesada para haicai. No entanto, o patrimônio cultural japonês fomentado por uma longa tradição que é o kigo, foi ignorado pelas composições haicaístas do Ocidente ou não foi divulgado de modo suficiente pela simples razão de não existir na poética ocidental.

Em 1987, foi fundado em São Paulo o Grêmio Haicai Ipê, por um grupo de brasileiros que começaram a realizar pesquisas sobre o kigo, tomando como modelo os haikai produzidos pelos imigrantes japoneses radicados no Brasil. Seus trabalhos resultaram na publicação de duas antologias e de dois livros de haicai com kigo. Por outro lado, este mesmo grupo pratica com muito entusiasmo também o haikai renga, tendo sido publicada uma primeira edição da Kigologia - relação dos termos de estação, kigo, em 1994. Estou certo de que esta sua segunda edição, revista e aumentada, vem contribuir enormemente para dar maior dimensão e profundidade ao haicai brasileiro.

Pois bem, o livro de Goga e Teruko traz, na primeira parte, uma catalogação dos kigo brasileiros. Indexados de várias formas diferentes, encontram-se aí praticamente todas as palavras relativas às especificidades de cada estação: os animais, as festas populares e religiosas, as flores e vegetais vários, as comidas sazonais, os fenômenos climáticos. Resta saber como se utilizarão as informações. De um modo geral, parece um livro voltado para o praticante de haikai, nos moldes dos catálogos de kigo existentes no Japão. Creio, entretanto, que será mais útil aos professores de haikai, ou coordenadores de grupos. Em relação aos catálogos japoneses, existe aqui uma especificidade, derivada da própria circunstância de composição e do ambiente cultural. No Japão, um catálogo é uma sistematização de algo que é difundido como prática centenária. Aqui, esse catálogo alinha, talvez em primeira mão, kigos que jamais foram utilizados por qualquer poeta. Na antologia, que comentaremos a seguir, percebemos que é assim, pois para boa parte dos kigos a organizadora teve de apresentar haikais feitos por ela, e provavelmente com o fim expresso de exemplificar o texto descritivo. Isso é, no final das contas, uma limitação do livro: muitas e muitas da expressões alinhadas como kigo não nasceram da prática poética, mas de um esforço (muito louvável, alias) de identificação dos kigos nacionais. O problema de as expressões não terem nascido na pratica poética é que elas freqüentemente correm o risco de soarem artificiais, ou, pelo menos, não usuais, distantes da língua quotidiana que é, afinal, o domínio e lugar escolhido pelo haikai desde o tempo de Bashô. Para só dar alguns exemplos, vejamos estes. Um dos kigos do outono é este: rajada outonal. Ora, ninguém diz isso, e a expressão soa estranha nos dois poemas de Masuda Goga que lhe servem de exemplo:

Não se avista nada,
senão as ondas de grama:
rajada outonal!

(Goga)

Do quintal sumiu
a galinha e sua cria:
rajada outonal!

(Goga)

Como a palavra rajada se usa sempre acompanhada de um qualificativo (ora é uma rajada de vento, ora uma rajada de metralhadora, p.ex.), os dois poemas, embora belos (o primeiro principalmente) em idéia, ficam estranhos em realização.

Outro exemplo que gostaria de dar se aplica a vários casos. Trata-se do emprego, como kigos, de palavras de pouco uso, ou de sentido muito técnico. Assim:

Na tarde chuvosa
Um gemido sufocado
- Trovão hibernal.

(Teruko)

Quem fala ou escreve trovão hibernal ? Se muito pouca gente, como pode esse ser um kigo? Outros exemplos do mesmo tipo:

Longo dia vernal
pássaros de dobradura
nas mãos enrugadas

(Teruko)

O ébrio e a lua...
Na calma noite vernal
Qual donos do mundo.

(Teruko)

Aqui também: os kigos listados são dia vernal e noite vernal , e as mesmas expressões são utilizadas no corpo do poema. Ora, o que é vernal? É primaveril. Mas ninguém diz assim... Estão ainda no mesmo caso, com maior ou menos comprometimento da espontaneidade e da beleza da expressão: alvorada estival, arco-íris hibernal, arrebol hibernal, atmosfera suave, bonança primaveril, bonança vernal, borboleta-hibernal, cerração estival, chuva estival, chuva outonal, chuvisco hibernal, etc, etc.

Outro problema são os kigos listados por tradição ou por vontade de registrar todos os fenômenos sazonais. O caso mais flagrante é o dos kigos relativos à neve. É verdade, como dizem os autores, que há neve no Sul do país. Entretanto, que sentido faz listar kigos como primeira neve . Esse kigo só se justifica nos países onde existe inverno prolongado com neve regular. E o que dizer do kigo nevasca , quando aplicado ao Brasil?

Esses e outros problemas, que ainda poderiam ser elencados, procedem do caráter pioneiro da obra, e da forma como foi feita - isto é, sem que dispuséssemos de um exemplário poético de alto nível de onde se pudessem extrair os kigos. Ora, como justamente não dispomos de um exemplário porque não temos a tradição dos kigos, e porque é justamente essa tradição que o Grêmio está tentando criar com o seu trabalho de vários anos, consubstanciado neste livro, vemos que não havia mesmo outro jeito: tínhamos de ter este catalogo, para a partir dele começarmos um verdadeiro esforço coletivo para melhorá-lo e elaborar uma linguagem poética adequada à expressão da natureza brasileira em haikai.

Assim sendo, o livro de Goga e Teruko constitui um verdadeiro marco nos caminhos dos haikai no Brasil.

Uma outra questão importante, diz respeito à forma de apresentação do livro. Embora bem feito e bem composto, trata-se de um livro praticamente sem ilustrações. Ora, exatamente num catalogo como este, as ilustrações são vitais. Principalmente no que diz respeito às plantas. Nós, brasileiros, temos praticamente apenas dois nomes para os vegetais que não se vendem em floriculturas: ou são flores, ou são matos. Assim, quando a kigologia lista uma certa planta e a descreve, dizendo que é muito comum em paisagismo, por exemplo, fico muito curioso para saber que planta é essa: se tivesse uma foto, como nos catálogos japoneses, o nome se tornaria menos abstrato, e passaria a poder circular como moeda mais comum.

Finalmente, um último comentário, agora sobre a antologia. Ainda devo voltar a isso, mais para a frente, apresentando talvez uma antologia da antologia. O que queria notar agora é apenas que a antologia traz poemas belíssimos. A maior parte dos mais bem realizados vem assinada por Teruko Oda, que é atualmente, sem sombra de duvida, a maior voz poética do haikai brasileiro.



Paulo Franchetti



6 de março de 1997

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