por Paulo Franchetti
(http://www.unicamp.br/~franchet)
Kobayashi Issa nasceu em 1763, em uma aldeia do atual distrito de Nagano, e faleceu em 1827, após uma vida marcada pelas desavenças familiares, pela morte de vários filhos e outros desgostos. | |
Sua obra tem sido objeto de avaliações bastante divergentes, e entre os grandes haikaístas do Japão certamente nenhum gerou mais controvérsia do que ele. | |
Para os adversários e para grande parte dos admiradores, Issa será sempre e apenas o autor de poemas semelhantes ao famoso: |
WARE TO KITE ASOBE YA OYA NO NAI SUZUME
(Venha brincar comigo, pardalzinho sem pai nem mãe).
Sentimentalidade excessiva, excessiva subjetividade de um poeta que, tendo perdido a mãe aos dois anos, demonstra a todo momento seu complexo de inferioridade e rejeição, sua consciência de ser o enteado, o desamparado. Essa tem sido a acusação principal, que ganhou força após a "restauração" do haikai empreendida por Masaoka Shiki (1867-1902). E é nessa linha que Earl Miner, por exemplo, vai escrever: "depois de Buson, o haikai novamente se deteriorou, como se pode ver na famosa, embora grandemente sentimental, poesia de Kobayashi Issa".
Do ponto de vista de outros autores, porém, como R. Sieffert e R.H. Blyth, Issa é um dos poucos poetas japoneses -- senão mesmo o único -- a ombrear com Bashô. E, de fato, a leitura de uma antologia em que se apresentem em ordem cronológica haikais dos principais autores permite ver claramente que estamos tratando de um poeta maior, de profunda sensibilidade e inegável mestria técnica.
Para o leitor ocidental, Issa é talvez o mais acessível dos grandes haikaístas. É mais fácil lê-lo e gostar dele do que de Bashô ou Buson. Isso talvez se deva em parte ao humor franco e simples de boa parte de seus textos, ou à sua preferência por temas ligados à vida e comportamento de animais e insetos. A principal razão, porém, para essa acessibilidade é o fato de Issa pouco se valer do procedimento mais comum da poesia japonesa, que é a alusão a fatos, poemas e personagens das obras clássicas chinesas e nipônicas. Em sua vasta obra encontram-se, entre altos e baixos, objetividade e pieguismo, iluminação e vulgaridade, um sempre sensível calor humano, uma sempre tocante e despojada apresentação (muitas vezes cômica) da condição humana.
Para que o leitor tenha alguma amostra da poesia de Issa selecionei
dois ou três textos do autor, que virão acompanhados de uma
precária tradução. E para que se possa julgar melhor
o mérito de cada haikai, julguei conveniente apresentar também
alguns de outros poetas versando o mesmo tema.
Os dois haikais apresentados a
seguir têm como tema a recitação
do Namuamidabutsu (Glória
ao Buda Amida) nos templos
durante dez noites de outubro.
Buson escreveu:
ANA TÔTO CHA MO DABU-DABU TO JÚYA KANA
Ah, o som sagrado.
O chá também diz da-bu da-bu
-- estas dez noites!
Issa escreveu:
NAGAI ZO YO YO GA NAGAI ZO YO NAMUAMIDA
A noite é longa.
É muito, muito longa:
Namuamida.
Minha impressão é que o poema de Buson permite duas leituras:
uma, a de que todas as coisas, cada qual a seu modo, dizem as palavras
sagradas e participam da mesma ordem; outra, a de que o poeta, cansado
de ouvir o nembutsu, começa a ouvi-lo por toda a parte, mesmo
no borbulhar do chá para fora da chaleira. Nesse caso, uma fina
ironia permearia o texto. Já o poema de Issa nos transmite de imediato
a sensação de abandono do homem na noite larga e escura,
nas trevas de onde emerge, nas palavras sagradas, a possibilidade de resgatar
o sentido da vida através da graça concedida pelo Buda. Os
dois textos são excelentes, embora profundamente diferentes: o de
Buson é espirituoso, um tanto evidentemente trabalhado; o de Issa,
absolutamente despojado, coloquial, direto. Dois mestres, dois estilos.
Os próximos haikais têm
como tema a libélula, inseto
que indica a estação outono.
Chisoku escreveu:
TONBÔ NO KAO WA ÔKATA MEDAMA KANA
É quase nada
a cara da libélula:
somente olhos.
Issa escreveu:
TÔ YAMA GA MEDAMA NI UTSURU TONBO KANA
Nos olhos da libélula
refletem-se
montanhas distantes.
Temos aqui o mesmo fato: a observação dos olhos do inseto.
No entanto, que diferença de horizontes! No poema de Chisoku, sujeito
e objeto estão rigidamente separados e a objetividade da observação
leva, no máximo, a um pouco de graça. No de Issa, todas as
coisas se compreendem, se refletem, contemplam, correspondem. E aquele
pequeno ser, símbolo por excelência da mobilidade e da transitoriedade,
contém a imagem da permanência e solidez das grandes montanhas
distantes.
Os próximos poemas tratam
de um tema comum: a neve.
Kitô escreveu:
TATAZUMEBA NAO FURU YUKI NO YOMICHI KANA
A neve cai mais forte
quando me detenho
de noite na estrada.
Hashin escreveu:
TEN MO CHI MO NASHI NI YUKI NO FURISHIKIRI
Não há céu nem terra,
apenas a neve
caindo sem parar.
Bashô escreveu:
UMA WO SAE NAGAMURU YUKI NO ASHITA KANA
Até mesmo os cavalos
nós contemplamos
nesta manhã de neve!
Issa escreveu:
TADA OREBA ORU TOTE YUKI NO FURI NI KERI
Apenas estando aqui,
estou aqui,
e a neve cai.
De todos esses poemas, o de Issa é o que apresenta menos elementos: o poeta apenas está ali, estando ali. E, no entanto, que sabedoria e desenvolvimento espiritual, que envelhecimento é necessário para que simplesmente se possa estar ali enquanto algo acontece! Faz com que nos lembremos da resposta de Buda: "Apenas estou desperto". Estar ali, estar desperto para si e para o mundo: Issa aqui é o melhor poeta, o mais denso, o mais profundo, e como sempre o mais simples, o mais raso!
E é só depois de lermos poemas como esse que devemos e
podemos pensar o propalado sentimentalismo de Issa, pois é necessariamente
diferente o sentido do "Ware to kite..." depois de aprendermos
que o poeta que o compôs é o mesmo que soube apenas estar
ali enquanto se sucediam a neve, as flores de cerejeira, o calor, os mosquitos
e a luz no céu no dia de Ano-Novo:
GANJITSU YA JÔJÔKICHI NO ASAGI-ZORA
Dia de Ano-Novo.
Que sorte, que grande sorte:
um céu azul-claro!
BLYTH,R.H. A history of haiku. Tokyo, Hokuseido Press.
BLYTH,R.H. Haiku. Tokyo, Hokuseido Press.
SIEFFERT, R. La littérature japonaise. Paris, Armand Colin, 1961.
HUEY, R.N. Issa's Chichi no Shuen Nikki. In: Monumenta Nipponica, XXXIX:1,
Spring,1984.
Nota sobre as traduções: Embora tenha realizado
previamente uma tradução literal a partir do japonês,
as traduções aqui apresentadas se valem sempre da interpretação
proposta por Blyth nos textos acima citados e incorporam, muitas vezes,
as soluções por ele apresentadas.
Veja também: Uma Home Page dedicada a Issa
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