Caqui Documenta: |
Artigo publicado em 28 de fevereiro de 1937 no jornal "O Estado de S.Paulo" |
OS MEUS HAICAISAo poeta Itige ("Neve do Crepúsculo"), meu amigoOcidentalmente - ou acidentalmente, se quiserem - o velho Pierre Louys teve razão: - "La poèsie est une fleur d'Orient qui ne vit pas dans nos serres cahudes. La Grèce elle - mêne l'a recue d'Ionic et c'est de la aussi qu'Andre Chenier ou Keats l'aont transplantée parmi nous, dans le désert poètique de leur époque, mais elle meurt avec chaque poete qui nous la rapporte d'Asie. Il fault toujours aller la chercher à la source du soleil". Lá, onde nasce a luz, nasceram a humanidade e a sabedoria, e com elas, a sua mais luminosa, mais humana e mais sábia forma: a poesia. E, como o sol, vem ela vindo para o ocidente, e, como ele, talvez, brilhando mais, tanto mesmo que obrigou os homens a fechar os olhos que não puderam resistir ao clarão. Incapazes de a contemplarem, dizem eles, agora, nestas longitudes, que "a poesia morreu". Não morreu: continuou a descer, com o sol; teve o seu crepúsculo; e está agora, estará sempre renascendo no Levante. Olho para aí e aí descubro, no seu aspecto mais simples e, pois, mais exato, a poesia: toda consubstanciada no haicai. Mas, o que é haicai? - Criada por Bashô (sec. XVII) e humanizada por Issa (sec XVIII), o haicai é a poesia reduzida à expressão mais simples. Um mero enunciado: lógico, mas inexplicado. Apenas uma pura emoção colhida ao vôo furtivo das estações que passam, como se colhe uma flor na primavera, uma folha morta no outono, um floco de neve no inverno... Emoção concentrada numa síntese fina, poeticamente apresentada em dezessete sons, repartidos por três versos: o primeiro de cinco sílabas, o segundo de sete e o terceiro de cinco. Impressão breve, mas tão extensível, desdobrável: "pastille fumante"... Assim por exemplo: "Furu ike ya que é a muito citada e recitada "Solidão",
de Bashô, e que traduzida em prosa e livremente dá isto: -
"No tanque morto/ o ruído de uma/rã que mergulha".
Vinte anos de poesia - uns trinta livros de versos escritos e uns vinte publicados - levam-me hoje à conclusão calma (que não é uma negação à minha nem um sarcasmo à obra dos outros) de que não há idéia poética, por mais complexa, que, despida de roupagens atrapalhantes, lavada de toda excrecência, expurgada de qualquer impureza, não caiba estrita e suficientemente, em última análise, nas dezessete sílabas de um haicai. "O Melro", "O Navio Negreiro", "A Vingança da Porta", o "Ouvir Estrelas", os trinta e três sonetos do meu "Nós" (no caso, não é pretensão, senão mero estoicismo, o colocar-me em tão superior companhia) poderiam ter sido reduzidos a simples haicais. Questões, apenas, de coragem: coragem de renunciar a si mesmo,
a uma porção de enfeites, de supérfluos mais ou menos
bonitos, para só manter um essencial. Ao descrever o primeiro, maravilhoso
verso da sua "Brise Marine", Mallarmé fez um haicai:
"La chair est triste, helas! et j'ais la tous les livres!"
Mas, não teve coragem de parar aí: sob esse essencial, alinhou
quinze supérfluos. É a poesia dispersiva do Ocidente. Uma tarde, há pouco tempo, eu me perguntei: - será possível o haicai em outra língua que não a japonesa? Franceses de hoje, como Jules Supervielle, Tristan Derime, Robert de Souza, Fernand Lot; alemães, como Ernst Wohlfarth, Otto Thonak, F. Rumpf; e ingleses, e italianos e até já alguns patrícios meus, têm tentado o haicai, mas sem disciplina, sem um eficiente trabalho de aclimatação, uma justa observância e adaptação dos processos e ritmos originais: apenas li-vre-men-te. Referindo-se a tais tentativas, declarou um grande espírito do Japão, na noite de 5 de maio de 1936, quando conviva de honra do jantar do P.E.N. Club de Londres, rematando o seu discurso no Pagani's Restaurant: "Penso que não é possível tentar a forma de dezessete sons em língua alguma que não a japonesa. O Poeta, que quisesse escrever poemas como os haicais, bem andaria em escolher uma pequena forma poética que melhor se adaptasse à sua língua materna"... Ora, eu quero até certo ponto contrariar - e contrariar é sempre a maneira mais evidente de admirar - a absoluta autoridade do grande Takahama Kyoshi. Todos os elementos e todos os processos do haicai podem ser encontrados e empregados na poesia nossa, geograficamente antípoda da sua. Antípoda... "Os extremos se tocam" - este é, para mim, um dos únicos provérbios que, até hoje, conseguiram "acontecer". As mesmas analogias plásticas que Georges Bonneau (o verdadeiro revelador do haicai no Ocidente) notou entre a poesia japonesa e francesa, descubro, e mais estreitas aind, entre aquela e a nossa, a luso-brasileira. Estas, por exemplo: 1) A poesia é silábica (isto é, conta sílabas e não acentos) como a nossa. 2) São comuns a ambas as línguas as "sonoridades elementares" ou "vogais": a,e,i,o,u. 3) Os ritmos ímpares "elementares" (de 5 e de 7 sílabas), peculiares à língua japonesa, também o são à nossa. O verso segundo do haicai, o de 7 sílabas, é a redondilha, que nasceu com a nossa poesia na Galiza, fez se a medida clássica de todos os nossos importados "romances", a música natural da nossa "trova popular", o diapasão da modinha capadócia, a nossa expressão folclórica por excelência, e mesmo a medida inconsciente, automática, da nossa fala. Diz-se até que nós falamos, sem o querer, por septissílabos. Os provérbios, os ditados plebeus, são exemplos disso: - "Nem tudo o que é luz é ouro"; "água mole em pedra dura - tanto dá até que fura", etc... Outro ritmo do haicai - o verso de 5 sílabas - é também velho habitual na nossa língua. Vem dos estribilhos medievais, dos refrões dos "Cancioneiros": "D'amores ei mal" (Ruy Paesde Ribella);"Os amores ei" (Pero Alcobo), etc; tornou-se a toada musical nas serraninhas brasileiras: "Papagaio louro das nossas tradicionais "Pastorelas": "Bela Pastorinha. foi o verso das "Trayeras", sob a "ação burlesca da raça negra" (Sílvio Romero): "Virgem do Rosário foi a cadência favorita das nossas "rondas" infantis: "Tutu'Marambaia. Servindo-se de todos esses recursos técnicos; e ainda das mesmas onomatopéias, aliterações, etc., que caracterizam os epigramas japoneses dos dezessete sons, e mais, procurando assimilar aquele "senso do símbolo" que possui, como nenhuma outra, a gente do outro-lado-do-mundo (senso esse que é a grande lição levantina, e tão extremado que faz, como diz Bonneau, com que, no haicai, "o sentido profundo do poema não tenha, às vezes, qualquer analogia com as palavras que o compõe"); e, afinal, acrescentando à minúscula pastilha nipônica um dourado todo nosso - a rima - a única corda que conseguimos acrescentar à lira dos gregos, essa "Rime, qui donnes leurs sons chego a estabelecer a fórmula do "meu" haicai. Esta fórmula: os três versos japoneses, na sua ordem original: 5 - 7 - 5; o primeiro, rimando com o terceiro; o segundo - septissílabo - com uma rima interna: a segunda
sílaba rimando com a sétima - o que não se pode dizer
que seja uma extravagância numa língua em que tal artifício
freqüentemente aparece, como nos provérbios populares: "Por
fora, bela viola, - por dentro, pão bolorento" ("fora"
com "viola"; "dentro" com "bolorento"); e
processo esse que cria um verso também de 5 sílabas pela
subtração de 2 sílabas a que a rima força (7
- 2 = 5), verso esse que se integra facilmente na música dominante
da pequena estrofe, que é a música do pentassílabo;
sentir, pensar e não dizer: somente insinuar. Mas... "res, non verba"; alguns exemplos, agora, desse haicai. (Dizem os japoneses que o haicai não deve ser explicado. Nós, porém, apenas iniciados, ainda não familiarizados com o espírito e a forma da exígua novidade, não podemos, por enquanto, dispensar algumas explicações). A flor, que se desfolha, é bem uma lição moral de alta caridade:dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde, para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir: CARIDADE Um dia do passado - céu azul varado de sol fino de ouro - que ficou numa vida, sugere a idéia da borboleta que os colecionadores espetam no quadro melancólico. Colorida e linda ainda, parece viva: mas está morta, bem morta: AQUELE DIA O haicai japonês acompanha o processo: está sempre "a la page", explora freqüentemente temas modernos (a aviação, o cinema, o rádio...). Aqui está um de inspiração mecânica, atual: todo um romance - o das imperceptíveis criaturas pelas quais a vida parece que passa sem nada deixar nem levar, como os trens-de-ferro pelas estaçõezinhas insignificantes onde ninguém embarca nem desembarca: HISTÓRIA DE ALGUMAS VIDAS Uma definição do amor: uma ave, voa alto, entre a terra e o sol; a sua sombra projeta-se no chão, assustando-o, movimentando-o todo, e vai-se. Ela é a ave. Ele, o chão extático: NÓS DOIS É das nossas lágrimas muitas vezes, que nascem as mais brilhantes alegrias. Pois não é nas gotinhas de orvalho, de manhã, que o sol mais brilha? Desse pensamento derivou este haicai: N.W. Uma imagem do silêncio das nossas caatingas - o silêncio agudo, todo aliterado em "ii", feito todo de tinidos de insetos sutis: QUIRIRI Descrição da velhice - a partida das ilusões como folhas de outono; o gesto sem verdes, sem esperanças, para o céu; os cabelos grisalhos; a solidão e o egoísmo dos velhos: VELHICE Um último exemplo: a definição do haicai num haicai. Que é ele, afinal? - o grãozinho de ouro que os lavageiros pacientes descobrem lavando a terra aurífera e deixando escorrer a ganga impura: O HAICAI Aí está. Compreende-se bem: trata-se ainda de uma experiência - mais
nada. O que eu reclamo, para esses versos, não são as rugas
fundas na testa séria, para a sentença que absolve ou condena;
mas as rugas leves, nos cantos dos lábios espirituosos, para o sorriso
que não absolve nem condena porque... porque o sorriso é
ainda a única coisa, no mundo, que não pode ser ridícula.
|
14 de dezembro de 1997 | |||
Guilherme de Almeida |
Escreva-nos! | Início da Página | Caqui |