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A HAIJIN SEDUTORA "fim de tarde Estávamos num táxi, entrando na avenida Paulista; o céu escurecendo, tempestade à vista; de repente, um trovão. Alice Ruiz fez o haikai acima no instante seguinte ao estrondo, depois de um breve silêncio, depois de um ligeiro recolhimento e fechar de olhos; o haikai surgiu de sua boca, palavra por palavra, como se ela acabara de colher uma flor, com cuidado, sem ansiedade, para não perder nenhuma pétala, abrindo um sorriso ao sentir o perfume e feliz com o instante que acabara de apreender. O último livro de Alice Ruiz, "Desorientais", é um diário poético, uma espécie de haibun - dias e noites vividos e revelados em vários haikais. Nenhuma invenção, nada artificial, nada arranjado, nada forçado, nada limado, nada "transpirado". Cada verso é expressão sincera e única de momentos em que ela se deixou entregar com a alma em estado de "grata aceitação". Simplesmente isso. E, no fundo, não é aquilo que Tohô nos ensina?
Quando Alice morou por quase dois anos em São Paulo, nos víamos menos que quando ela morava em Curitiba, mas algumas vezes estive em sua casa, nalgum lugar na Granja Viana, que ela encheu de poesia, alegria, e onde escreveu uma boa parte dos haikais que estão no livro. Do portão à casa, era preciso descer quase um morro: a casa térrea, cheia de janelas, ficava lá embaixo, no fim do terreno. E, atrás da casa, nos fundos do quintal, depois de uma improvisada cerca de arame, tinha tudo aquilo com que um poeta sonha - além do quintal, é claro: tinha uma vasta mata que enchia os olhos e se perdia no horizonte - árvores, pássaros, borboletas, terra, vagalumes, sapos, flores, cheiro de mato, brejo, noite estrelada, céus inteiros de todas as estações. Capim, mariposas, mosquitos... A varanda da casa dava para essa vista e Alice logo pendurou uma rede: "entre uma estrela "varal vazio "rede ao vento Quando Alice me mostrou o haikai da saudade, ainda triste com a separação, lá estava a rede, pendurada na varanda, solitária. Um outro namorado deixou-lhe muito mais lembranças naquela casa: "você deixou tudo a tua cara Numa outra visita, ela contou-me de uma nova amizade, "fim do dia "minha casa e das noites escuras e longas, "amigo grilo "noite escura Mas, essa mesma casa, por duas vezes, foi arrombada e saqueada por ladrões, e Alice guardou o que sentiu num haikai, inspirada, como sempre foi, pelo poeta que ela mais adora, Issa: "roubaram a casa Alice Ruiz é uma haijin sedutora. Desorienta qualquer um. A sua luz sempre seduz, natural e magicamente, e, a sua poesia é revelada à sombra dessa luz: "pensar letras Sempre abrindo um olhar raro, atento, que só os poetas de plantão têm: "meio dia O livro de haikais de Alice Ruiz, "Desorientais", demorou para sair, mas saiu, pela Editora Iluminuras, cheio de haikais, dividido em três partes: "Eus", "Eles, Elas, Elos", e "Eros". A apresentação é do José Miguel Wisnik, e Arnaldo Antunes cuidou das orelhas. O livro está por aí, e é possível ser encontrado nas poucas livrarias de bom gosto no Brasil. Para quem gosta de haikai, é uma leitura obrigatória, imperdível, deliciosa, porque é diferente de todos os outros - é uma espécie de haibun, talvez no sentido mais verdadeiro e sincero, pois os espaços em branco, entre um haikai e outro, que num haibun tradicional estariam ocupados com notas, impressões, breves explicações, no diário poético de Alice os haikais não precisam ser contextualizados: a poeta transformou tudo em poesia, contou tudo com poesia. Muito do haikai que anda por aí, nos dias de hoje, está precisando conhecer a obra de Alice Ruiz para florescer melhor e mais bonito, daquele jeito que o Bashô nos ensina: "o que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; Alice Ruiz aprendeu algo muito importante que alguém, não me recordo o nome, já disse uma vez, e acho que é mais ou menos assim: "Não imite os antigos.
(*) citações retiradas do livro "Haikai", de Paulo Franchetti |
6 de março de 1997 |
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