1. | O haicai não é a revelação de algo concreto, mas abstrato. Através de elementos concretos - as palavras -, ele nos revela algo abstrato, o haimi.
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2. | O haimi é o grande barato do haicai. É uma percepção ou um sentido que damos a algo e que queremos compartilhar com os outros através da linguagem, que é num primeiro momento expressão e logo a seguir comunicação.
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3. | O haimi é encontrado através do estado meditativo.
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4. | Estado meditativo é quando estamos receptivos. Quando a mente está serena e surge uma espécie de observador silencioso. A mente não atrapalha, não se interpõe.
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5. | O estado meditativo independe do objeto de meditação. Pode ser qualquer coisa: a natureza, a natureza humana, o cotidiano, as idéias e até a linguagem. De qualquer coisa vista do ponto de vista meditativo pode se extrair haimi.
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6. | Assim, o haicai nasce de algo que é objeto de um ato meditativo. Esse objeto nos é apresentado não para enxergarmos ele mesmo, mas o que o autor viu nele e quer compartilhar com o leitor.
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7. | Os recursos formais próprios da poesia são válidos na medida em que estão em função de nos revelar o haimi. Assim, não há elementos a priori válidos ou inválidos. Em cada haicai, acharemos o meio formal. Imagens, recursos sonoros, jogo de palavras, enfim.
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8. | Os recursos formais do gênero, como o terceto, a métrica, a relação entre os versos, permanecem, mas são objeto, ao longo do tempo e da cultura em que o haicai se dá, de crítica e até de transformação. Desse ponto de vista, a métrica em nossa produção de haicai contemporâneo passsou a ser questionada, uma vez que nada soma para se obter o haimi. Por outro lado, um haicai com métrica ou rima, pode ser apenas uma opção de estilo, que nada compromete o barato do haimi. Se tem haimi, os aspectos formais externos (métrica, rima) passam despercebidos e tê-los ou não é uma questão de gosto. Não está aí o haimi. Quando o haimi é maior, não há o perigo deles chamarem a atenção para si e desviar do haimi. Pelo contrário, podem, pela sonoridade, reforçar a percepção do haimi, criando um ambiente estético mais agradável, não tão árido (penso mais na rima do que na métrica).
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9. | Não há haicai sem recurso formal. O haicai não é a coisa em si do mundo. A coisa em si não tem sentido nenhum. É impossível falar das coisas como elas mesmas falariam se pudessem. Elas não podem. É o nosso olhar sobre elas que produz o haicai. O que a estética do haicai nos ensina é a falar sem complicar. É achar algo sutil a partir das coisas. Assim, haverá sempre um recurso formal: descrever uma situação específica e não outra é um deles, selecionar algo que tem um paradoxo é outro e assim por diante.
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10. | A transitoriedade de tudo é uma das coisas que se percebe em estado meditativo. O kigô, portanto, só é válido se revelador de haimi.
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Alguns haicais:
Alto da serra --
Passa sobre a terra arada
A sombra das nuvens.
| Paulo Franchetti
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Aqui, basta a nós vermos uma imagem. O recurso formal é a descrição para
percebermos o belo movimento das nuvens passando pelo chão, através da
sombra, "arando" a terra. Existe em função do haimi, que é visualizarmos,
através das palavras, o movimento. Assim, ficaremos no mesmo estado
meditativo que permitiu ao autor enxergar um grande barato nisso tudo.
apaixonada
apaixotudo
apaixoquase
| Alice Ruiz
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Aqui, o estado meditativo permitiu ao autor ser um observador descolado da
linguagem. A linguagem foi o objeto de sua meditação. Deste modo, percebeu
que dentro da palavra apaixonada havia o nada e criou três outros
finais/sentidos que juntos com o original mostram os três estágios da
paixão. O recurso formal é o do neologismo, que existe em função de
percebermos o haimi, o grande barato de ver a palavra paixão, que passa a
ser objeto meditativo tanto quanto as nuvens do haicai acima.
cerveja na beira da praia
mesmo inclinado o copo
espuma
| Ricardo Silvestrin
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Aqui, a espuma que aparece é a do mar. O haimi é a percepção de que é
impossível tomar cerveja na beira da praia sem espuma, pois se não houver a
espuma do copo, haverá sempre a do mar. O estado meditativo percebeu na
relação entre a linguagem e o mundo uma palavra que serve para duas coisas
numa situação concreta. O barato é ver que elas se encontraram numa
situação de verão e os seus significados no poema se conflituam pois há
apenas um significante.
admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge
| Bashô
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Aqui, o objeto de meditação é a linguagem. Uma comparação banal é alvo de
crítica do mestre. O haimi é "não seja o bobo da linguagem". Ela pode levar
você a dizer muita besteira. A linguagem em estado não-meditativo, é claro.
sinos do centro
o som não vem da igreja
vem de dentro
| João Ângelo Salvadori
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Aqui, o haimi é partir de um som dos sinos que se misturam entre o
presente e o passado. O som do presente evoca o passado. Ou o som emerge
mesmo do passado para o presente. Ou os sinos estão silenciosos e o som vem
de dentro do autor. Bota estado meditativo nisso. O recurso formal é
oposição entre o dentro e o fora através das palavras dentro e centro, mas
elas se aproximam tanto que centro pode estar siginificando desde o início
dentro (sinos de dentro). A rima iguala os dois. Há sons por todo o poema,
s, c, vem/vem, dentro/centro. O haimi é o som.
tarde de vento
até as árvores
querem vir pra dentro
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Paulo Leminski
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Aqui, o haimi é a imagem de desepero das árvores agitadas ao vento, que
está apenas sugerida no poema. Pode haver também folhas e galhos de árvores
voando para dentro de casa, acompanhando o movimento das pessoas. O recurso
formal é o comentário que revela uma imagem. A rima não perfeita
vento/dentro só deixa o poema mais sonoro, aproxima pelo som o sentido de
fora (vento) e dentro e não compete com o haimi. Ao contrário, o reforça.
Muitas das afirmações partiram de reflexões de Paulo Franchetti, a quem
agradeço por me fazer pensar essas meio-respostas, meio-perguntas.
Leia também: Os dez mandamentos do haicai
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